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(Texto finalizado às 1:40. Isso com certeza quer dizer alguma coisa...)


Sacção cognitiva. Foi este o termo inventado por meu amigo Chubble para designar o evento ocorrido quando duas histórias completamente diferentes são capazes de se relacionar, e ser comparadas de tal maneira que uma torna possível a compreensão da outra. Disse a ele que já existiam diversos termos para designar tal evento, sendo ‘metáfora’ talvez o mais recorrente. Mas insistiu o nobre ser que ‘sacção cognitiva’ é agora um neológico termo formalizado, e que não muito em breve o veremos estampado em didáticos livros de português.
                E é fazendo uso de tal sacção, que vos falo do dilema que envolve todo jovem escritor. A tão pomposa e complexa dama chamada Reescrita.
                Ah, a Escrita! Tão bela e ingênua em seu primeiro brilhar! Não há magia maior do que a presente no brilho que existe entre as linhas que trespassam o nascimento daquela ideia... aquela ideia que esteve em sua mente por eras... formigando para ser inscrita em papel. Quando seu texto finalmente nasce, o orgulho paterno lhe enche da maneira mais teatral possível. A história lentamente parte ao mundo, e você sabe que parte sua partirá junto a ela nessa partida partidária.
                Mas não há como negar. Fazer com que um texto nasça é peculiarmente prazeroso. Mas fazê-lo voltar ao ventre pra nascer uma segunda vez é desgastante e enfadonho.
                “Gostei do seu texto, caro amigo que me pediu uma opinião sincera, mas talvez você deva melhorá-lo, acrescentando mais detalhes no parágrafo onde descreve as axilas da protagonista, e alterando o que acontece no final. Aquele lance da explosão não se encaixou muito bem, desculpe. Tente mudá-lo.” E é com um comentário desses que tudo se desmorona. Não bastaram os meses de gestação que você gastou numa história... lá vem um sábio leitor e opina dizendo que você deve reescrever...
                Ah, a Reescrita! Tão necessária, mas tão demoniacamente chata! Passar pelos locais onde já esteve, e dizer aos seus amigos verbos e substantivos que eles não estão exercendo seu papel com maestria, e precisam ser trocados por outros que exerçam a função de maneira melhor. Mesmo que o autor concorde que há falhas em suas linhas, ele nunca vai se render a ideia de que alterar suas palavras é tão divertido quanto escrevê-las pela primeira vez. A escrita lhe serve de aspiração... é romper seus limites e expressar sua voz. Já a Reescrita vem lhe aparar as arestas, adequando seu texto ao que “deveria ser” e tornando-o mais aceitável... E quem disse que devemos sempre nos render ao que é aceitável?
                E é nessa sacção que chegamos a Shelby. A terceira e meia garota por quem Chubble se apaixonou (o ‘meia’ é uma história para mais tarde). Nunca entendi quais os motivos que levaram meu sábio amigo a gostar dela, mas sei que no momento em que pôs seus não-sei-quantos olhos na garota, sentiu uma atração que ia além de mera paixão casual. Não sabia se era o que os humanos costumavam chamar de amor à primeira vista. Por isso, olhou para Shelby dezessete vezes antes de ter certeza.
                Talvez eu tenha esquecido de mencionar as circunstâncias em que ocorreu tal encontro. Há tempos minha irmã fez uma curta viagem ao Rio de Janeiro, para cuidar de negócios que envolviam raquetes e croissants de chocolate, e sem nem mesmo saber levou nosso oculto amigo dentro da bagagem. Ansioso por conhecer a chamada cidade maravilhosa, Chubble me relatou que a única coisa realmente maravilhosa que encontrou fora Shelby. A tão bela moça que encantava seus olhos, os quais apenas ele podia enxergar. Shelby era como ele... enigmática e admiradora de queijo gorgonzola.
                Por dias os dois aproveitaram a cidade, divertindo-se em piqueniques improvisados em esquinas do lado leste e em corridas durante a madrugada contra as gélidas correntes de ar que trespassavam um calçadão qualquer. A história de amor entre ambos floresceu como um rápido devaneio infantil. Tanto que, no dia em que minha irmã voltou para casa, não apenas Chubble voltou na bagagem, como Shelby adentrou nossa casa também.
                E um lar, onde uma criatura enigmática já habitava, duplamente estranho se tornou. Nossos olhos humanos não enxergavam Shelby, mas qualquer um era capaz de sentir o grande espaço que ela ocupava. Talvez fosse seu ego inflável, ou a mobília da qual não conseguia se livrar. Tudo o que sei é que, não bastava o quanto ela me incomodasse, não pude dizer “não” quando Chubble pediu que eu permitisse que ela se mudasse. Também não pude dizer “sim”, e foi por isso que acabei dizendo “Aceita sanduíche de mortadela?”.
                Por dias a relação entre o casal se manteve estável. Gostavam de jogar cruzadas e de recitar poemas às quatro e quinze da manhã. Cobiçavam comprar um cachorro e dissecá-lo para abstrair conhecimento biológico. Juntos, sonhavam cada vez mais alto...
                Chubble nunca poderá dizer que não foi avisado. Disse a ele para que não se entregasse completamente a paixão. Mas o ingênuo ser fatalmente fez de Shelby o centro de suas atenções. Não sei se a garota se sentiu pressionada pelo excesso de elogios e carinho, ou se possuía alguma séria alergia a mortadela. Tudo o que sei é que Shelby fracassou em sua missão, e após doze dias, nove horas e trinta e sete minutos, não pôde mais sustentar seu disfarce. A pérfida individua era uma fugitiva. Procurada por traficar porquinhos da índia canhotos a laboratórios clandestinos. Não sei se era ave ou mamífero, mas era com certeza um ser traiçoeiro. Esmagou os sentimentos do pobre Chubble, e deixou nossa casa levando todo o estoque de gorgonzola.
                E por dias meu pobre amigo desabou-se em decepção. Não apenas os potes de sorvete, mas até mesmo os potes de feijão foram devorados durante sua extrema melancolia acompanhada pela fome. Tratava-se da primeira grande desilusão amorosa do pequeno Chubble, visto que nenhuma das outras duas e meia garotas de seu passado o cativara de tal maneira.
                Nos primeiros dias, desejou não apenas a morte de Shelby, mas também que ela fosse torturada por babuínos impiedosos num método diabólico e opressor. Após o estágio raivoso, desejou que pudesse mudar seu passado. Que pudesse voltar no tempo, e reviver as últimas semanas. Que tivesse percebido que havia muitas outras coisas maravilhosas no Rio além da enigmática Shelby (dizem, por exemplo, que há uma lata de lixo na esquina de uma das avenidas que é de uma simetria perfeita). Que não tivesse depositado toda a sua eufórica paixão em tão pouco tempo numa garota. Que tivesse agido de outra maneira...
Chubble queria reescrever o ocorrido.
Foram necessários alguns dias serenos e um pouco de chá de seticina para que meu nobre amigo entendesse que aquilo não era o fim. Ou talvez fosse, mas que todo fim nos abre uma porta para um novo começo. Nem tudo o que escrevemos ao longo da vida nos agrada, mas nem por isso podemos voltar e refazer nossas tolas ações. Erros não foram feitos para serem consertados, e sim para prevenir os outros erros do futuro.
A história de Shelby não é apenas ruim. É um lixo. É chata, enfadonha, e não deveria ser contada a ninguém... Mas nem por isso Chubble deve rejeitá-la. Afinal, qual mesmo a graça da vida se não tivermos algumas desilusões? Do mesmo modo que os textos de um escritor nunca de destacarão se não houver alguns textos ruins vez ou outra. Reescrever é para os tolos... os sábios deixam sua marca no texto de baixa qualidade, e dão um passo para o próximo volume, no qual sabiamente tentarão se superar.
A intenção de tal texto não é contar uma história. É falar sobre a Reescrita, essa tal jovem que tanto me atormenta. E para tal faço uso da sacção cognitiva, mostrando que até mesmo Chubble sabe que reescrever um texto é como lembrar-se de uma ex-namorada. Vocês podem até voltar a se dar bem, mas nada nunca será como da primeira vez.
Afinal, textos ruins são como desilusões amorosas... por mais que você queira esquecê-los, apagá-los ou consertá-los, você sabe que tais refletem parte de sua essência. São parte importante de seu passado. Retratam dias em que você agiu de maneira estúpida, mas que ainda assim agiu como bem queria. E talvez, por isso, você não deva tentar consertá-los...
Não sei nem se eu mesmo entendi o que quis dizer com esse texto. Seres humanos tem certa dificuldade pra entender certas metáforas... ou melhor... sacções cognitivas. Mas se os humanos não compreendem, talvez para os pequenos porquinhos da índia escritores faça algum sentido.
Nem sei se eu estava falando da Reescrita realmente. Talvez fosse um modo que encontrei de falar sobre outra coisa. E talvez Shelby não fosse traficante de verdade... Talvez... esse texto tenha ficado um tanto confuso... ou talvez confuso demais... Talvez eu não devesse tê-lo escrito...
Ou talvez... eu deva Reescrevê-lo...

Reescrita: O eterno dilema de Shelby

A história a seguir foi encontrada por meu amigo Chubble, escrita numa página rasgada de um diário a mercê do lixo hospitalar encontrado ao fundo do terreno de uma academia de artes cênicas. O papel continha digitais engorduradas, e um leve aroma de sorvete de limão. Contudo, Chubble insistiu que eu transferisse tais linhas para o público, na intenção não apenas de imortalizar sua mensagem, mas também na esperança de que algum humilde leitor conheça o significado de “tapulhice”.
(Os nomes do sorveteiro Rodrigues da Cunha e do garoto Bernardo Fernandes foram retirados da história para evitar maiores constrangimentos ou processos judiciais contra o paupérrimo escritor.)



Deleite. Quer palavra melhor do que essa? Que outras sílabas poderiam de forma tão singela representar o doce momento de contato entre o paladar e tal creme refinado? A cena intocável na qual meus clientes tão satisfatoriamente são invadidos pelo sabor gelado do melhor sorvete do bairro. Foi tal razão que me levara ao inscrever tais sete letras na lateral do carrinho. Quem disse que um mero vendedor de sorvetes não pode querer se expressar de forma poética? E é fato sabido por muitos que a palavra “Deleite” por si só soa mais poética do que certas estrofes que encontramos pela vida.
Mas deixemos deleites de lado, pois tal história não é sobre mim. Nem mesmo sobre os sorvetes que há anos vendia no mesmo ponto. Ambos são só circunstâncias que rodearam o jovem garoto. Bochechas com sardas, cachos castanhos, e língua bem solta aos oito de idade. Seu nome... nunca soube. Mas o descrevo como ninguém mais poderia. Pois só eu sei dos poderes que alcançou antes do fato. Só eu sei do mais importante... que não foi o fato... mas sim o efeito... (Não se preocupem, meus sorvetes não são tão complexos quanto o que costumo dizer por aí.)
Voltemos então ao primeiro dia, no qual os olhos esverdeados me fitaram de forma singela. Nunca gostei de crianças, mas sempre fingi adorá-las. Afinal, a maior parte do lucro de um sorveteiro vem da remota arte usada pelos jovens chamada “birra”.
Mas desacompanhado jazia o jovem garoto, me fitando como se desejasse apenas com os olhos me trucidar.
- Posso ajudá-lo? – indaguei, fazendo-o despertar do transe momentâneo.
- Ah, me desculpe... Estava pensando em qual dos sabores preciso escolher...
Fitei-o de sobrancelha erguida, e lhe entreguei o cardápio.
- Bom, as opções são muitas. Das mais variadas. Morango, creme, menta, chocolate... todos refinados com uma receita especial de família...
- Não são os sabores que importam, seu tapulho! – ele me repreendeu.
- Como é...? Tapulho?...
- Não estou em dúvida quanto aos sabores! Tenho oito anos e sou gordinho! É claro que quero o de chocolate! Mas o que eu quero não importa... preciso encontrar o Poder Secreto...
Ele desviou os olhos e voltou-se para o cardápio. Permaneci fitando-o com olhos confusos. As razões pelas quais nunca gostei de crianças pareciam dançar a minha frente.
- Você por acaso não teria a lista dos poderes em algum lugar, teria?
- Lista dos... garoto, eu não tenho tempo pra brincadeiras. Escolha logo o sabor que deseja.
- Ai, seu tapulho! Não conhece nem mesmo os poderes dos sorvetes que você vende?! É a história da sua família!
Soltei um suspiro pesaroso e contei até dez mentalmente, enquanto o insistente garoto permanecia me explicando:
- As receitas de sorvete da sua avó têm ingredientes mágicos especiais. Cada um dos sabores nos dá poderes diferentes, capazes de fazer coisas fantásticas acontecerem!
- Ok, garoto. A história é legal... mas de onde tirou essa ideia? – acabei cedendo uma risada.
- Não é só uma história. Sua avó era uma bruxa bondosa, que enfeitiçava os sorvetes para alegras as crianças. Minha mãe a conheceu há muitos anos, e contou tudo pra mim.
- E posso saber onde está sua mãe? Ela não devia deixar um garoto tão distraído sair por aí andando sozinho...
- Você ainda não acredita, né? Tô falando a verdade, moço! Seus sorvetes são mágicos! Minha mãe descobriu os poderes deles quando era criança, e me trouxe aqui uma vez quando eu era pequeno... Mas ninguém até hoje conseguiu encontrar o Poder Secreto... e eu vou achar...
- Poder Secreto? – rebati com indiferença - Garoto, acho que eu saberia se vendesse esse tipo de coisa no meu carrinho.
- Não se preocupe. Estou acostumado a pessoas não acreditarem em mim. Mas vou provar pra minha mãe que sou capaz de encontrar o Poder Secreto. Vou tomar todos os seus sabores de sorvete, até encontrá-lo... mesmo que isso gaste todo o tempo do mundo...
O pobre jovem claramente era perturbado, mas não recusaria vender mercadoria a um consumidor tão ávido por meus sorvetes. Foram necessários alguns minutos para que ele por fim optasse por groselha.
Deu-me o pagamento em moedas e partiu sem dizer coisa alguma.
Quase que no mesmo horário, no dia seguinte, retornou com o mesmíssimo olhar penetrante.
- E então? A groselha te deu algum poder fantástico?
- Você ainda não acredita em mim, não é mesmo, seu tapulho? – murmurou o jovem – Bom, infelizmente não é o Poder Secreto. Mas, assim como todos os outros, seu sorvete de groselha tem sim um poder especial. O poder da paixão. Funciona melhor do que poções do amor...
- Ora, essa! – exclamei em ironia – Não vá me dizer que o sorvete lhe arranjou uma namoradinha.
- Ainda sou muito novo pra isso, seu moço. Mas hoje na escola, durante o recreio, Bianca Fagundes deixou que eu sentasse do lado dela e segurou nas minhas mãos durante todo o tempo. Isso com certeza foi efeito do sorvete de groselha! É o poder da paixão!
- Magnífico. – ergui as sobrancelhas – Mas parece que não era esse o poder que procurava.
- Pois é... vou ter que experimentar mais um... escolho o de menta.
E o de menta a ele entreguei. Novamente, deu-me o pagamento em moedas e partiu sem dizer coisa alguma.
Passou-se o dia, passou-se a noite, e no mesmo horário matinal, surgiu o garoto a minha frente. Começava a gostar da brincadeira, e sorri ao lhe dizer:
- E então? Que poderes a menta lhe deu?
- Ultra velocidade! Você não faz ideia de como é um poder bacana! Ganhei de todos os meus colegas na aula de atletismo!
- Não me diga... quer dizer então que finalmente encontrou o que procurava?
- O quê? Não! Que tapulhice! Ser veloz é divertido, mas não chega nem perto do poder que eu realmente procuro!
- Mas garoto... o que lhe faz pensar que esse tal Poder Secreto realmente está entre os meus sorvetes?
- Minha mãe disse que estaria, e ela conheceu sua avó. Ela nunca esteve errada sobre nada, e não será a primeira vez.
- Bom... se insiste nessa ideia... qual sabor escolherá?
- Hmmm... o de limão, por favor.
E o de limão a ele entreguei. Outra vez, deu-me o pagamento em moedas e partiu sem dizer coisa alguma.
Mas eis que em tão próxima manhã surgia novamente, disposto a comprar um novo sabor.
- E então... o que me diz sobre o limão?
- Você não vai acreditar! Ele me deu o Poder da Inteligência! Aprendi toda a matéria da escola em apenas um dia, e fechei a prova de geografia! Os professores chegaram a me elogiar!
- Ora, essa... se eu soubesse que meus próprios sorvetes podiam me fornecer tamanha grandeza! – a cada vez, render-me a brincadeira do garoto parecia mais simplório e divertido – Mas e então? Era esse o poder que procurava?
- Ainda não. Vou ter que experimentar mais um.
E por dias tal rotina foi feita da mesma maneira. Passaram-se incontáveis manhãs, nas quais o garoto ao mesmo horário sempre surgia, contando-me sobre os poderes do último sabor escolhido e requerendo um sorvete diferente. Não podia negar... a cada dia, me afeiçoava pela criança. Nem mesmo me importava em entender o real significado de “tapulho”. Cheguei a temer que ele enfim dissesse ter encontrado o tão procurado sabor, e não mais me visitasse todas as manhãs.
       Juntos, passamos por quase todo o cardápio. Cereja, morango, chocolate, prestígio, goiaba, kiwi, flocos e até mesmo chiclete. E os poderes que o jovem dizia adquirir eram dos mais variados tipos... Energia Incessante, que o permitia manter-se acordado durante toda a noite. Vencedor dos Esportes, que o fazia invencível em qualquer jogo que se arriscasse a competir. Sorte Reluzente, na qual os pais decidiam lhe aumentar a mesada e na rua ele encontrava moedas perdidas. E vez ou outra, façanhas ainda mais ilógicas saíam de sua boca... ao afirmar que o de goiaba o havia feito flutuar, e que o de chiclete permitia que ele se teletransportasse.
                Mas por mais que os poderes lhe enchessem de alegria e boas histórias a contar, o jovem afirmava sempre estar ainda em busca do Poder Secreto, o qual, por mais que tentássemos, nunca conseguíamos acertar.
               - Os sabores de sorvete estão acabando. – adverti - Não restam muitos no cardápio...
               - Não se preocupe. Sinto que estamos chegando perto. Enfim... escolho o de amêndoas.
                Aquele foi o último sorvete que vendi. Jamais pude voltar a proporcionar qualquer tipo de deleite... pois a memória desta manhã se encontra para sempre no local mais impertinente de minhas lembranças.
               Acredito que o fator que me marcou profundamente não foi a tragédia em si. Não foi assistir os lábios do garoto se inchando com rapidez, enquanto sua garganta se fechava. Não foi tentar inutilmente salvá-lo, enquanto clamava por socorro até que uma ambulância aparecesse. Não foi nem mesmo receber mais tarde a notícia do Doutor Carlos, que duramente me disse que o pobre jovem possuía uma grave alergia a amêndoas.
              O que realmente me marcou foram as últimas palavras que pude ouvir dos lábios da criança. Caído na calçada, o garoto teve ainda tempo de dizer-me seus últimos devaneios, antes que sua garganta se fechasse.
               - Achei o Poder Secreto... Era esse... era esse o Poder...
            - Acalme-se! Acalme-se! Eu vou salvá-lo! Vai ficar tudo bem! – eu gritava em total desespero.
         - Não se preocupe. Era esse o poder que eu procurava. O poder do sorvete de amêndoas. Aquilo que eu quero há tanto tempo... – e foi então que seus lábios se movimentaram pela última vez – o poder de reencontrar minha mãe.

Relatos de um Sorveteiro Deleitado

eram nove e meia quando olhei para ela.
que era bela, qualquer um
poderia dizer.
mas o que me atraiu, na verdade,
não foi seu rosto, ou seu corpo
mas o jeito que virava a página
como se o livro fosse um amigo
cachos ruivos e mãos delicadas.
de tão fascinado, fiquei
de castigo.

e todos os dias, lá repetia.
Sentava
eu,
e aguardava.
Ansiava a chegada
da ruiva
que nem sempre aparecia,
mas consumia cada reles sonho
meu

passaram-se meses, passaram-se anos.
esperar se tornou rotina.
tentei descobrir seu nome.
até mesmo o telefone.
teu horário não sabia
e me fiz então de otário
lhe tentando
poesia,
mas não sabia
rima com ruiva.
e todo dia a decepção.
se a loba não vai, o lobo não uiva.

a ruiva nunca apareceu.
mesmo por anos eu tendo esperado.
mas o destino intercedeu,
um dia Judite sentou-se ao meu lado.
conversas, risadas, histórias e beijos.
foi com Judite que me casei.
perversa, malvada, se afogue no Tejo,
na imagem da ruiva eu rabisquei.

mas eis do tal momento, - que surpresa - no dia do casamento,
quando Judite subiu ao altar,
meus olhos fitaram a quarta fileira.
sentada ali pra me ver casar,
a ruiva piscava de forma certeira.

não gritei, não xinguei,

e nem mesmo deveria.
sussurrei um singelo “obrigado”.
se não fosse a ruiva vadia
eu nunca teria me casado.



A Ruiva que me ca(u)sou

Já fazem três anos, sete meses, oito dias e treze horas que me contaram tal história. Mas acredito que no momento em que outro alguém se puser a lê-la, já se haverá passado bem mais. Contada dos lábios de Dona Rita, que tem por hábito mastigar folhas de hortelã enquanto conta seus casos, tal história se inicia num dia de céu límpido e instigante, no qual uma vaca quadrúpede de nome Solange ingeriu algo mais do que o pasto costumeiro.
O pasto que existe na história pertencia ao Senhor Gilmar, que era fumante, e habitava a cidade de Fatiganha, um local pacato onde há tempos não se passava trupes de circo nenhum. Solange, a quadrúpede, havia recebido seu nome em homenagem a sogra de Gilmar, que não era quadrúpede, mas mugia como tal. Uma vaca de expressão abatida e movimentos cotidianos repetitivos, destinada a vagar pelo pasto e ser ordenhada todas as manhãs pelas mãos de Olavo, o empregado prestes a se casar com Vanessa, a atraente filha mais velha do vizinho.
Foi então que no já citado dia de céu límpido e instigante, Solange (a vaca, e não a sogra) acidentalmente ingeriu um objeto curioso. Seus relatos afirmam que o sabor se assemelhava a metal enferrujado, em fusão com balas de caramelo. Mas o que certamente chamou a atenção do animal não foi o sabor, mas sim o curioso e repetitivo som que o objeto realizava. Um sonoro e aconchegante “Tic-tac”, pertencente a um peculiar modelo de relógio que apenas era produzido em fazendas da Indonésia.
Foi Olavo, o empregado noivo de Vanessa, quem primeiro percebeu o som que agora era emitido do interior da bovina. Assustado, chamou às pressas pelo patrão, Gilmar, que, como já disse, era fumante. Ambos se fascinaram com o constante contar dos segundos que a vaca agora chefiava. A surpresa só foi maior quando Solange emitiu um mugido angustiante, ao meio-dia e quarenta e cinco, a hora exata em que o frango assado por Dona Maria, a mulher de Gilmar, que ouvia músicas francesas enquanto cozinhava, atingiu o ponto exato para degustação.
A família de Gilmar se espantou ao ver como a vaca sabiamente havia previsto o horário em que o frango estaria pronto, e puseram-se a fazer diversos testes com a bovina. Entre os constantes tiques e taques do relógio em seu estômago, Solange emitia idênticos mugidos em diferentes momentos do dia, cada qual com o seu significado. Primeiramente, indicou o horário exato para que Dona Maria retirasse as roupas do varal. Em seguida, mugiu avisando que Olavo estava atrasado para o almoço com os pais de Vanessa. Lembrou a Gilmar quando deu-se a hora de buscar os filhos na escola. Avisou a Maria que a novela já havia começado. E por fim, mugiu indicando que era hora para que todos fossem para a cama.
Por dias, a família e os empregados de Gilmar viveram seguindo os constantes mugidos de Solange, que em sua mais nova função de relógio, os lembrava de todos os seus compromissos e lhes impedia de atrasar um segundo que fosse. A vaca ditava os horários de acordar, trabalhar, almoçar, estudar e cortar as unhas do pé. Gilmar passou a ser conhecido como o homem fumante mais pontual da cidade, assim como sua esposa, Dona Maria, tornou-se a ouvinte de músicas francesas mais responsável e eficaz em suas tarefas.
Contudo, a notícia da vaca relógio logo se espalhou por toda Fatiganha. Os vizinhos de Gilmar passaram a visitar Solange, a vaca, que lhes mugia lembrando-lhes sempre das dezenas de compromissos marcados pontualmente dos quais não podiam se esquecer. Fascinado ao ouvir as histórias da sábia bovina, Ferdinando Soslaio, o prefeito da cidade, que traía a esposa com a mulher do padeiro, foi visitar a família de Gilmar. Ofereceu-lhe uma boa quantia de dinheiro em troca da vaca. Dinheiro este que havia sido desviado das reformas do hospital público no qual o Doutor Renato, que era canhoto, atendia seus pacientes.
Sem saber das canhotas origens do pagamento, Gilmar aceitou o acordo e vendeu a vaca ao prefeito Ferdinando, que voltou a trair a esposa com a mulher do padeiro naquele mesmo dia. Solange, a vaca, foi colocada num pedestal de mármore polido na praça central da cidade. Pedestal este que havia sido esculpido por Serafim, que era artista há anos por puro prazer de esculpir.
Em seu novo posto, a vaca passou a trabalhar como relógio de toda a cidade. Emitia seus melancólicos mugidos todos os dias, nos quais lembrava os cidadãos dos horários para acordar, trabalhar, almoçar, estudar, ir ao banheiro, mascar chicletes, levar o lixo para fora, preparar o jantar, fazer as tarefas escolares, assistir ao jornal local, trabalhar mais um pouco, dormir e acordar novamente no dia seguinte. A cidade de Fatiganha tornou-se conhecida por possuir os cidadãos mais responsáveis e pontuais de toda a América Latina, a qual engloba torno de vinte países conhecidos pelos seres humanos.
Por meses, Solange, a vaca, ditou os horários da cidade. O relógio em seu interior jamais parava de funcionar. Com o tempo, tornou-se conhecida e respeitada por toda a população das redondezas. Turistas e repórteres apareciam todos os dias, fascinados pela pontualidade intrínseca da malhada criatura.
Solange, a vaca, não apenas tornou a cidade pontual e organizada. Trouxe investidores e consumidores em excesso, os quais enriqueceram todos os comerciantes de Fatiganha. Aglomerações de humanos amontoavam-se em torno do animal, venerando-lhe como uma verdadeira rainha bovina.
Eis aqui o momento da história em que Dona Rita fez uma pausa. Foram necessários alguns segundos para que ela mastigasse mais um pouco de folhas de hortelã e contasse o trágico fim que teve a história de Solange, a vaca.
Hoje, após anos passados do ocorrido, a polícia concluiu o motivo da tragédia. Mas naquela época, ninguém fazia a mínima ideia do que causara a grande explosão. Afinal, tão fissurados pelos constantes tiques e taques do relógio, nenhum cidadão jamais preocupou-se em descobrir o que o relógio realmente era. Pois o relógio não era um relógio. Ou ao menos não um relógio comum. O que Solange, a vaca, havia engolido no pasto era, na verdade, uma bomba. Programada pacientemente para explodir quando uma multidão de seres humanos se aglomerasse a seu redor.
A potente potência da bomba não devastou apenas os quatro estômagos de Solange, a vaca, mas também toda a área de Fatiganha, dizimando toda a população. Gilmar, Maria, Olavo, Vanessa, Ferdinando Soslaio, Serafim, Doutor Renato, o padeiro, a mulher do padeiro e todos os outros pontuais e responsáveis cidadãos foram mortos num piscar de olhos bovinos.
Dona Rita terminou a história sem me fornecer maiores explicações. Indignei-me, perguntando impaciente sobre os detalhes da bomba relógio, da explosão e das consequências desastrosas. Rita enfureceu-se e me fitou de modo impaciente. “Como pode, após ouvir esta história, continuar a me fazer as perguntas erradas?” disse enraivecida. Não entendi a princípio o que ela queria dizer. Naquele dia, fui embora de sua casa com a cabeça perdida em pensamentos obscuros.
Foram necessários três anos, sete meses, oito dias, doze horas e um texto para que eu finalmente entendesse quais foram as razões que levaram à tragédia de Fatiganha. Entendo enfim que os Fatiganhenses são a prova viva (agora morta) da estupidez humana. Deram tanta atenção a uma vaca, e se esqueceram de seus próprios detalhes. A relevância de suas vidas não estava no fato da bomba-relógio ou da repercussão de Solange. Mas sim nos fatos de que Gilmar era fumante, Maria ouvia músicas francesas, Olavo era noivo de Vanessa, Vanessa era filha do vizinho, Ferdinando traía a esposa com a mulher do padeiro, Renato era canhoto, Serafim era artista por paixão, e que a América Latina engloba vinte países conhecidos por humanos. Tão vidrados em seguir os mugidos melancólicos da vaca, os Fatiganhenses não levaram em conta o detalhe mais crucial: Vacas são extremamente traiçoeiras, e nenhuma delas poderia levar a cidade a um caminho que não fosse a tragédia.
Sorrio então ao me lembrar de Dona Rita, mas não apenas de Rita em si. Lembro-me agora de Dona Rita, que mastigava folhas de hortelã. Pois humanos não são um. Humanos são sempre “um que”. Mesmo que um que venere uma vaca.
Meus dedos param de digitar e me assusto de repente. Ouço então um sonoro e aconchegante “Tic-tac” dentro de mim. Não sei de onde veio, nem o que significa. Mas sei que meu fim é o mesmo que o de Solange (a sogra, não a vaca, que faleceu há três meses). Talvez, leitor, quando terminar este texto, minha bomba-relógio já tenha explodido. Peço então que ouça seus próprios tiques e taques e seja “um que” dê orgulho. Afinal, cedo ou tarde, a bomba-relógio dentro de seu estômago também irá explodir, quer você seja Solange, ou um mero Fatiganhense.

A Fatigante História da Vaca Relógio

        Conta-se que há muitos anos atrás (ou talvez à frente) existiu um reino mágico onde mortais e paçocas viviam em perfeita harmonia. Numa terra onde flores desabrochavam em açúcar e nuvens se desfaziam em saborosos melaços, tais simpáticas guloseimas de amendoim transmitiam seus conhecimentos aos humanos, os ensinando a viver de forma doce e entusiástica. Crianças e mini paçocas cantavam cantigas de roda e corriam sob raios ensolarados todos os dias, acreditando que a vida era um misto incontável de açúcar e felicidade.
Nem mesmo a “idealidade” de Platão esboçaria uma sociedade tão perfeita.
            Mas foi então que o Rei Amargus XV contra tal se rebelou. Acreditou que as paçocas desviavam a atenção dos humanos de tarefas produtivas, levando-os a um caminho dominado pela criatividade nada lucrativa.
Num temível acesso de fúria, o rei decretou uma nova lei. Paçocas haviam se tornado ilegais. A mera existência de tais guloseimas amendoadas tornou-se expressamente proibida. Os soldados do monarca devastaram suas terras, expulsando não apenas as paçocas, mas qualquer mero vestígio da herege arte açucarada.
Amargus ordenou que a única expressão artística legalmente permitida fossem representações de sua própria face em bustos de pedra. Estátuas em sua homenagem foram esculpidas por todos os cantos, ao passo em que muros foram erguidos nos limites do reino para impedir que qualquer paçoca rebelde ousasse tentar sorrateiramente ultrapassar a fronteira.
Nem mesmo a “insensibilidade” de Maquiavel suportaria tal governo como forma de política.
            Professores foram encomendados via Sedex, aplicados em cursos nos quais ensinariam os súditos a direcionar todas as suas atividades diárias em direção a fins lucrativos. A preocupação com a produtividade de seu próprio tempo tornou-se parte do cotidiano de plebeus e palhaços. E por décadas, nenhuma outra paçoca foi encontrada.
Anos se passaram, até que um grupo de seis jovens gnomos resolveu explorar os limites do reino. Guiados por rumores trazidos pelos ventos, que sussurravam lendas antigas sobre seres adocicados que um dia haviam habitado aquelas terras.
Nem mesmo a “aventuracidade” de Tolkien entenderia o anseio em descobrir o além do feudo.
            Foi numa noite de três luas que os sonhadores indivíduos encontraram um segredo que há tempos ansiava por ser revelado. Uma trilha, sinuosa e discreta, que se arrastava para além das fronteiras. Os gnomos se espantaram ao notar que a trilha era feita de nada menos do que paçocas. Sim... singelos pedaços cilíndricos de doce amontoados linearmente, que levavam a algum destino inimaginável.
Nem mesmo a “misteriosidade” de Conan Doyle entenderia a atratividade do mistério a ser revelado.
            Aguçados, os gnomos seguiram a trilha, em rápidos passos, antes que a Guarda Real os impedisse de instigar o desconhecido.
Nem mesmo a “fertilidade” de C.S. Lewis poderia imaginar a felicidade de tais seres ao alcançar seu destino.
            Uma pacata vila encantada, onde as linhagens de paçocas sobreviventes refugiavam-se em perfeita harmonia. Viviam em segredo, num esforço incansável de preservar a doçura que tanto lhes fora reprimida. Fascinados, os gnomos se uniram a suas sinfonias, divertindo-se por dias e noites, nos quais declamavam açúcar e comiam poesia.
            Não tardou, contudo, que os plebeus do reino notassem o sumiço dos seis pequenos seres. Aguçados pela curiosidade, pouco a pouco os cidadãos partiram em busca do paradeiro dos gnomos. À medida que encontravam a trilha de paçocas e alcançavam a pacata vila, encantavam-se de tal maneira que não voltavam jamais. A população do reino aos poucos transbordava em direção ao povoado.
            Nem mesmo a “raivosidade” de George Martin seria capaz de compreender o sentimento que dominou Amargus no momento em que notou que seus súditos cada vez mais o abandonavam.
            Ao descobrir sobre o refúgio açucarado, o poderoso monarca ordenou que seu exército marchasse em direção a vila e exterminasse definitivamente todas as paçocas. Contudo, suas palavras ecoaram pelo salão deserto. Colocou seus óculos para que pudesse enxergar melhor e constatou a dura verdade.
Não havia mais exército. Não havia mais soldados. Todos haviam fugido. Cercado por suas estátuas e bustos de mármore, mergulhado em sua miopia, o monarca nem percebera como lentamente terminara em repleta solidão. Seu reino agora nada mais era do que terras inabitadas, enquanto a população da vila das paçocas crescia estrondosamente.
            O reino tornou-se nada, e o nada tornou-se reino.
            Foi em seu auge momentâneo que, num lampejo amendoado, a terra das paçocas desapareceu. O reino se escondeu por trás de nuvens de algodão doce e nunca mais foi encontrado por ninguém.
            Desamparado, Amargus vagou por anos em repleta solidão. Mesmo quando, por acidente, encontrou a trilha secreta, não pôde enxergá-la. Sua mente era tão desprovida de açúcar que, ao olhar para as cilíndricas guloseimas, tudo que enxergava eram pequeninos tocos de madeira.
Sem nada a se apegar que não sua mente sem inventividade, o monarca vagou por terras longínquas, onde encontrou novos súditos e deu início a uma nova civilização rumo ao desenvolvimento (dessa vez, sem paçocas para lhe perturbar). Uma civilização sem criatividade da qual, contudo, fazemos parte.
            Dizem por aí que a trilha das paçocas ainda existe, mas apenas pode ser encontrada por indivíduos de mente adocicada. Num mundo onde açúcar não mais se declama, e poesia não mais se come, cada vez mais o reino das paçocas se distancia.
            Mas rumores sussurram que, vez ou outra, jovens de mentes diferenciadas desaparecem sem explicação. E quando voltam (se é que voltam) relatam histórias sobre um reino onde tudo é doce, e onde a felicidade se colhe em árvores de amendoim.
Nem mesmo a “insanidade” de Lewis Carrol poderia negar que tais rumores parecem utópicos e ilógicos por demais.
            Mas creio que ainda existem gnomos cansados de admirar os bustos de pedra de seus reis, que buscam por um mundo novo, repleto de magia. Seres pequeninos que entendem que o mundo onde vivem não pode permanecer em amargurada ignorância.
Afinal...
Nem mesmo a “adocidade” de uma paçoca arriscaria viver num mundo onde a mente é tão diabética.

O Reino das Paçocas Ilegais

Triângulos Metamórficos
Tabloides feitos de pó.
Do pó viestes, mas não retornarás.
Fecharam as portas que levam para trás.

Triângulos Metamórficos
Sangue se espalha pelo chão.
O linóleo reflete o exausto detetive
Que com arestas fugitivas agora convive.

Triângulos Metamórficos
Assassinaram a hipotenusa.
Centauros que voam, dragões que galopam
Nos não tão crespos cachos de Medusa.

Quadrados me questionam
Por que triângulos num poema?
Não fui eu, não foi Platão,
Nem mesmo a lógica do sistema.
Foram triângulos metamórficos e um círculo sonhador.

Losango Não Encontrado

A princípio, nada mais do que saborosos frutos de angiospermas orgulhosas. A fundo, representações em miniatura da vermelhidão de nosso universo. Ao passado, incluída na lista de mais fáceis palavras que crianças aprendem a escrever. Ao futuro, na lista de mais intimidantes refeições que idosos com dentes postiços temem saborear. Ao presente, apenas uma simples maçã.
            Há muito a se dizer sobre um indivíduo pelo modo como ele a abocanha. Carentes de atenção exibem um crocante som chamativo. Tímidos repartem o fruto em partes antes de ingeri-lo. Mentes pequenas o devoram de uma só vez. Sonhadores dão-lhe apenas uma simples mordida, e a estampam no logo de sua empresa de eletrônicos. O mísero crocante som causado pela mordida nos revela anseios e desejos dignos de qualquer clímax subentendido.
            Mas o segredo mais bem guardado por tais frutas é o de que são elas que regem nossas vidas. Mesmo os mais ignorantes seres humanos seguem seus passos sob a Teoria das Três Maçãs. E eis que a explico a leigos e juristas...
            A primeira delas seria a “Maçã Envenenada”. Sim, a mesma que enviou a pálida princesa de lábios rúbeos a um sono profundo nas histórias encantadas. É a maçã que representa nossa infância. Um fruto que representa não o envenenamento em si, mas sim a facilidade com que os problemas da vida podem ser superados. A noção de que basta algo mágico, como um beijo de amor verdadeiro, para cessarmos qualquer efeito maligno. A ideia espontânea na qual crianças podem quebrar qualquer maldição. É com olhos brilhosos que caminhamos em nossos primeiros anos com a noção de que tudo é belo, e que dificuldades podem facilmente ser superadas (mesmo que com a ajuda de sete fartos anões).
            A segunda etapa em nossa teoria responde à “Maçã do Edén”. O momento crucial em que cansamos de viver na ilusória utopia e ansiamos por enxergar o mundo de nossa própria maneira. O fruto sedutor que nos atrai da mesma maneira que atraiu a ametódica Eva, nos trazendo a cobiça irrefreável de experimentar o “Novo”. Na pérfida adolescência em que nos cansamos de ser ordenados por forças exteriores a nós e mordemos a maçã da independência, sendo guiados única e exclusivamente pelo desejo. Deixamos de lado o mundo que foi criado para nós, na intenção de criar o nosso próprio a nossa maneira.
            E assim partimos à maturidade, na qual a “Maçã de Newton” finalmente nos aguarda. O fruto crucial que despenca em nossos crânios, do mesmo modo que se chocou há tempos na cabeça do pulcro cientista, causando um severo distúrbio no qual o indivíduo passa a acreditar que o mundo é regido por leis científicas e que a magia não passava de uma ilusão da infância. Antes, o mundo era movido por feitiços. Agora, por física. A ciência tampa nossos olhos e desaprendemos a sonhar.
            Vermelha e sedutora, a maçã nos faz nascer, sonhar e morrer, iludidos por não perceber que a semente não se encontra no fruto, mas em nosso próprio interior, esperando apenas que algum estímulo a faça germinar.

            Vivemos pelas maçãs. Crescemos pelas maçãs. Somos maçãs... Somos maçãs? Sim. E é por isso que prefiro lasanha.



A Verdade Sobre as Maçãs

                Certa vez um homem sábio me disse que a vida é como uma colmeia sob os galhos de uma macieira em pleno verão. Nunca compreendi tal comparação, mas ela não se faz necessária nesta história. Escrevo aqui na intenção de compartilhar minha extrema afeição por uma das personagens de Joanne Rowling. A intrínseca senhorita Bones.
            Em meio a um universo repleto de diversos personagens, a escolha de tal garota parece nada mais do que inapropriada e desprovida de sentido. Contudo, tenho guardados numa pasta de cor amarela alguns arquivos que revelam minhas razões para idolatrar esta humilde criatura.
            É fato quase inquestionável que a jovem Susana trouxe aos fãs da saga a primeira impressão do que é ser selecionado para uma das casas de Hogwarts. Mesmo que a desagradável Ana Abott tenha sido a primeira aluna a ser chamada pela professora McGonagall, todos sabem que, numa sequência de fatos, o segundo é quem carrega o árduo fardo de não apenas enfrentar a tarefa, mas também de se igualar ao primeiro. E Susana triunfalmente ingressa na Lufa-Lufa com ligeira ansiedade na página dos livros, e um belo sorriso na tela dos filmes.
            Não percebem? A real importância de tal fato? É sabido que Lufa-lufas são a classe social subalterna da saga, considerados desnecessários e muitas vezes mencionados em piadas maldosas que envolvem excrementos de acromântulas. Mas a corajosa senhorita Bones bravamente estampa tal título, abraçando a Lufa-Lufa como seu lar. Tal grupo de rejeitados alunos tem sua importância estampada logo de cara nos pequeninos tímpanos ou globos oculares de qualquer jovem criança que conheça a saga pela primeira vez. O pomposo chapéu seletor cita a casa dos texugos antes que todas as outras.  É através da jovem de cabelos ruivos que os amarelos de Hogwarts são fixados na mente do jovem Potterhead. As palavras de Rowling dizem que “Susana saiu depressa e foi se sentar ao lado de Ana”, mas deixam nas entrelinhas que aquele era um dos momentos mais simbólicos de sua vida. A mensagem da garota é clara e direta ao público: “Vocês podem nos ignorar, mas estamos aqui. E temos orgulho disso.”
            Talvez seja esta uma das maiores lições contidas em toda a saga. Ela não foi A Garota que Sobreviveu. Não foi a aluna mais brilhante da classe. Não se destacou nos campos de quadribol. Susana não alcançou a glória eterna. Mas em seus breves segundos de fama, apresentou com orgulho a casa a qual pertencia, registrando-se para sempre na mente dos fãs de Joanne.
            Um centauro dinamarquês, ao ler os parágrafos acima, há de achá-los mal contados e sem sentido. Não apenas pelo fato de não falar fluentemente minha língua, mas também pelo fato de não compreender um dos mais inquestionáveis dogmas que rege a ficção. A pomposa ideia de que não existem protagonistas. Tal conceito é uma formosa ilusão criada pelos autores, que sentem a necessidade de se apegar a um de seus personagens mais do que aos outros. Mas independente de seus feitos, a importância atribuída a cada um deles é exatamente a mesma.
Mesmo que grande parte da vida de Susana não esteja inscrita nas palavras de Rowling, a nobre garota sabe que exerceu seu papel com eficiência. Compreende enfim que possui sua função neste mundo, e que não há diferença entre derrotar o Lorde das Trevas, ou derrotar os obstáculos de uma vida cotidiana. Ambos querem te destruir. A diferença está apenas na atenção que isso atrai a sua história. Assim como não há diferença entre cativar uma pessoa ou cativar milhões. Elogios alheios nunca serão tão importantes como elogios vindos de si próprio.
         Ao caminhar pela estrada empoeirada que leva a meu destino, carrego na mala um globo de vidro embalado com plástico bolha. Nele, guardo a memória de Susana, que me incentiva a seguir em frente todos os dias, me lembrando sempre de que minhas origens e as circunstâncias não definem quem realmente sou. Basta que eu me lembre que não importa o que os outros pensem, ou mesmo qual ídolo venerem. Na história contada em minha mente, cabe a este jovem complexo fazer de mim mesmo meu próprio protagonista.

A Fabulosa Vida de Susana Bones

         E nas entranhas da academia, vivia um professor castor. Com seus simpáticos incisivos sorridentes, transbordava simpatia aos seus alunos, ensinando métodos efusivos de como se constrói um dique para demarcar represas de conhecimento. Os maravilhados alunos assistiam com alegria os ditames do sábio castor, que lhes indicava um caminho no qual conceitos e valores se unem num esforço mútuo de alcançar a verdade.
O velho roedor por dias levou os estudantes a acreditar que a verdade estaria nos limites da represa, e que de um bem construído dique nada escaparia. Num local onde a maioria dos educadores eram lobos sedentos de sangue, o carisma sem igual do castor se destacava em meio aos docentes. Os ingênuos jovens o elegeram como seu líder, fantasiados por sua ideologia.
            Mas verdades mal contadas rapidamente se apodrecem. O castor era pomposo em seus discursos, mas fétido em suas ações. As ideias demagógicas cederam à primeira forte tempestade, fazendo o dique se romper. O conhecimento represado escorreu-se porta afora, e os alunos assistiram espantados a farsa revelada. Os métodos eram falsos, assim como o próprio professor, que não sabia construir dique nenhum. Policiais o algemaram e jornais noticiaram de forma sensacionalista a dura verdade: O professor castor era, na verdade, um esquilo.

            

O Curioso Caso do Professor Castor

          “Era uma vez” talvez não seja a melhor maneira de iniciar essa história. Mas não há como voltar atrás, pois foi com tais que dei início ao parágrafo. Outono foi um jovem nascido numa manhã de verão. Sentenciado desde seu batismo a aprender que, assim como as folhas, tudo cai constantemente ao longo da vida.
Ainda jovem, foi forçado pelos pais a estudar todas as possíveis ciências da natureza. Como físicos renomados, ambos trabalhavam dia e noite na intenção de elaborar a Nova Lei da Gravidade, uma tese que propunha que a força gravitacional seria bem mais eficiente do que afirmara Newton. Assim, por toda a vida, seus genitores o estimularam a abraçar a gravidade como a uma irmã, a qual um dia lhes renderia um formoso prêmio Nobel.
            Os pais de Outono não o ensinaram a andar, mas sim a cair. Era importante para eles provar como a gravidade afetava os bebês. Não o incentivaram a praticar esportes como alpinismo ou asa-delta, mas sim atividades como escavação de túneis subterrâneos, para que estivesse sempre o mais próximo possível da fonte gravitacional. Não permitiam que ele emagrecesse, mas sempre o incentivavam a acumular massa corporal, para que seu peso o mantivesse fixo ao chão.
            E assim... o jovem Outono levava sua vida, sem grandes expectativas ou ilusões, pois diziam rumores que tais letais fantasias poderiam fazer um ser humano flutuar. E se Outono alguma vez ousasse desafiar a física, seus pais jamais o perdoariam.
            Mas sabem bem como a vida funciona. Nos contentamos com iogurte desnatado, até que um anjo nos apresente o sorvete de baunilha. Foi num dia chuvoso de primavera, que entre as confusas trilhas da tabela periódica, ao brincar inocentemente no laboratório da família, conheceu o discreto Hélio. De tão tímido, se incolorava em todo seu inodor. Talvez fosse o 4 em sua massa atômica, ou talvez o modo singelo como os colegas o chamavam de He. A questão é que bastaram segundos para que Outono se afeiçoasse e o tomasse como amigo.
            Dizem que quando se encontra alguém especial, este nos deixa nas nuvens. Curiosamente, Hélio realmente exercia tal efeito. Durante tardes e noites subsequentes, divertiu o jovem Outono com acrobacias e truques, nas quais enchia bexigas coloridas e as erguia magicamente ao infinito, como se nada no mundo pudesse detê-las. O intrigava a maneira como Hélio causava efeitos em seu corpo, deixando-o nervoso de tal maneira que a voz despontava fina e ruidosa de suas cordas vocais.
            Foi então que a amizade num sonho resultou. O intrigante Hélio convenceu seu parceiro de que juntos nada os deteria. Cobiçavam a ideia de fugir durante a madrugada, com Outono amarrado a centenas de balões que ergueriam seu peso em direção ao céu. Hélio os levaria até o astro mais longínquo, onde juntos poderiam desfrutar de seus dias e realizar seus sonhos mais inimagináveis. Nunca mais haveria que ouvir os pais recitando-lhe fórmulas e leis matemáticas em preto e branco. Seu mundo seria repleto de cores, as quais ilustrariam sua vida da maneira como bem quisesse. O jovem seria livre em fim.
            Ansiosamente, guardou todos os seus sonhos na bagagem. Mal sabia que tais o arruinariam, ainda que nem eu mesmo acredite que tenha agido erroneamente.
            Foi às três e sete da manhã que os amigos tentaram partir. Uma fuga rápida da janela mais alta do laboratório de seus pais. Hélio triunfalmente erguia dúzias de bexigas coloridas, as quais erguiam o alegre Outono cada vez mais para o alto.
            Mas o garoto já não era mais criança. Repletos de desesperança, os pais urraram seu nome ao acordar e fitar o ponto que indicava seu filho em direção a luz do luar. Rogaram-lhe a maldição da maturidade, para que a fantasia o expulsasse em direção ao mundo real. Foi no quebrar destas ilusões que as leis da ciência tomaram conta de si. A inércia, o empuxo e a densidade se uniram num uníssono sorriso maquiavélico, ao contemplar as ações da poderosa gravidade.
            A tão invejosa irmã, agarrou-se a Outono com toda sua sagacidade, buscando enfim provar que os pais estavam certos e que Newton nunca imaginara a real magnitude de tal depressiva força. Hélio tentou resistir. Pediu ao amigo que acreditasse no impossível e que não desistisse de lutar. Mas já era tarde.
            Os sonhos na bagagem de Outono eram pesados demais para que pudesse aguentar. No momento em que a gravidade os envolveu, ambos despencaram juntos em direção ao chão pedregoso. O estalar de seus ossos foi superado apenas pelo forte quebrar de todos os seus devaneios.
             Senhor Pai e Senhora Mãe haviam vencido enfim. Após anos, haviam finalmente provado sua tese. A Nova Lei da Gravidade agora se estampa em livros de física por todo o universo. A glória eterna lhes foi concedida, e cientistas os aclamam mundialmente. Newton sorri em seu túmulo, orgulhoso. No canto da sala de estar, um formoso prêmio Nobel os enche de orgulho. Lustroso, dourado... encharcado pelo sangue de Outono que pinga vagarosamente todos os dias manchando o carpete.

Hélio e Outono - Uma férvida história sobre física e sonhos

Tua mãe diz que seus olhos são belos por terem sido herdados de sua avó. Sua avó afirma que a beleza deles é herdada de um tio distante. Seu irmão acredita que seus olhos se embelezam de acordo com as vestes que usa. Sua irmã já pensa que os dela são mais belos que os seus. Seu namorado afirma que a magia deles é revelada quando seus sentimentos se afloram. Seu ex já acredita que é no desabrochar que eles ficam mais atraentes. Seu oculista lhe diz que a cor deles se destaca por trás das lentes. Geneticistas afirmam que tudo não passa de um gene recessivo. Os artistas acreditam que seus olhos refletem a beleza de sua alma. Os filósofos se perguntam se por trás deles não se esconde uma dialética ainda maior. Palhaços me dizem que suas pupilas se dilatam quando ri constantemente. Mixólogos me convencem de que tal olhar não passa de uma tática de sedução. Minha mãe me disse que seus olhos combinam com os meus. Meu cachorro apenas os observa, porque não aprendeu a falar. Já eu, desconsidero todas as afirmações de tolos que não te conhecem realmente. A magia não está em seus olhos. Mas sim no modo como você os ergue quando nos encontramos. Não creio que seja intencional, mas quase nada na vida é. E não é tal verdade que nos guia? A verdade de que não se trata dos retratos da pigmentação da alma, mas sim dos percursos que os cílios incrivelmente descrevem em busca de seu destino.

Quando ergue teus olhos

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