Cara Simélia,
Uma vez mamãe me disse que o tempo
passa mais rápido à medida que envelhecemos. Assim como quando me dissera que
eu não devia furar o maldito piercing, ou que comida esquentada no micro-ondas
nos enchia de radiação, não dei ouvidos à ela. E vejam só agora... anos se
passaram. Décadas, acredito eu. E já não sei mais se é apenas o tempo tão longo
aquilo que nos distancia.
Confesso, ainda me lembro da sua
obsessão com o tempo quando éramos crianças. Quando decidiu, com apenas sete
anos, que seria uma brilhante cientista. Em suas ingênuas palavras, seria a
primeira a construir a fantástica máquina do tempo, capaz de levá-la a qualquer
desventura do passado. Os anos se passaram e a fantasia passou a se fundir com
pesquisas reais e estudos intensos acerca dos mistérios da física. Todos os
professores indagaram como uma adolescente poderia ter produzido um artigo tão
complexo sobre a teoria do espaço-tempo ainda no ensino médio.
Naquela época, os sonhos já haviam
amadurecido. As conversas bobas sobre viagens temporais haviam sido descartadas
pelas próprias leituras à Stephen Hawking. Mas o desejo de desbravar a ciência
ainda permanecia. Seria reconhecida no campo de pesquisas da relatividade. E,
um dia, ainda revolucionaria o modo como as pessoas viam a ciência.
Mas, Simélia, por que deu ouvidos ao
seu pai? Se sabia que o velho era um tolo machista que subjugara sua própria
mãe durante todos os anos de casamento... por que cedera a suas vontades? Eu e
você sabemos bem que jamais fora adepta do pensamento de que mulheres naquela
idade deveriam arrumar parceiros com urgência. Mas, ainda assim, começou o
namoro com aquele imbecil. O detestável filho do Senhor Prefeito.
Seu pai sempre foi um grande puxa-saco
quando o assunto é política, não é mesmo? Então que ele lambesse as bolas do
maldito filho do prefeito, e não você! O garoto nunca te respeitou, desde o
primeiro encontro! Ele a privou de uma vida toda de descobertas no florescer da
sua sexualidade tão resguardada. Cada toque, cada beijo, cada aperto, jamais
lhe instigou ao desejo... mas a levava ao receio. Ao medo. Não apenas porque
você sabia que o tal moço é um ogro. Mas porque você sabe bem o que deseja.
Pode nunca ter tido um relacionamento,
mas seu coração soube na primeira vez que a viu. O filho do prefeito pode ter
sido um jegue sem igual. Mas a irmã dele, Clarice... Você jamais se esqueceu da
primeira vez que fitou aqueles olhos castanhos. Da forma como descobriu que a
simplicidade do castanho podia guardar um brilho indescritível.
Como dói em mim saber que você se
culpou todas as vezes em que fugiu com Clarice pelos parques da cidade. Que
chorou sozinha e perguntou a si mesma se era certo desejar aquele beijo, aquele
abraço, aquele sorriso, quando seu pai tanto repetia que você e Clarice deviam
conquistar homens de qualidade. Os passeios secretos durante a madrugada, as
mensagens enviadas das mais variadas e criativas maneiras, os girassóis que ela
roubava para ti, e os pedaços de pizza que você roubava para ela, as músicas
que ouviam juntas, o toque dela em sua mão, em seu corpo... tudo isso a faria
completa. Mas você recusou-se a aceitar.
Ainda assim, passou anos ao lado de um
brutamonte, aguentando todos os insuportáveis defeitos, só pra que não se
afastasse da cunhada-amante.
Simélia, dói em mim ainda mais...
lembrar que estive contigo quando seu pai desferiu-lhe aquele tapa. O doloroso
tapa de vergonha quando você e Clarice foram descobertas. Não era apenas uma
garota... era a filha do prefeito, o que fazia da vergonha um vexame ainda
maior.
Eu sei que ainda chora por saber que
Clarice fugiu da família e foi morar com parentes distantes, decidida a
terminar a faculdade longe dali. Sei também que o motivo das lágrimas é que não
teve coragem o suficiente para ir junto com ela. Que não aceitou o convite,
pois achou que não era o certo a se fazer. O medo tomou conta de seus sentidos,
Simélia, e você deixou que o maldito prefeito fizesse o filho colocar este anel
em seu dedo. O anel que o faz chamá-lo de noivo, e brotar um sorriso no rosto
de seu pai.
Mas repense, minha querida... repense
se é mesmo prudente baixar a cabeça. Sabe bem como será esse casamento. Nada de
conversas carinhosas, ou passeios românticos. Não que você tenha sonhado alguma
dessas coisas com ele. Mas não haverá amor. Serás para ele apenas uma
companhia. Um troféu social que ele exibirá nas festas na prefeitura, e uma
boneca de trapos destinada a ser seu brinquedo sexual. Jamais sentirá prazer,
Simélia. Jamais sentirá amor.
E o pior... é que com o tempo vai
acabar se acostumando com isso. Irá entender que não há mais tempo para estudos
científicos, ou trabalhos em laboratórios com pesquisas sem propósito. Seu
dever é estar ao lado do teu homem. Cuidar da casa... Engravidar.
Ah, sim... terá lindos filhos,
Simélia. Na verdade, apenas um, já que um único será o bastante para seu marido
provar sua virilidade, já que ele nunca realmente desejou crianças. Mais
especificamente, será uma filha, com os cachos iguais aos teus. Até o
nascimento dela, sua mente já terá apagado toda sua independência.
Completamente submissa ao seu homem, o único contato que terá com a física e
química as quais tanto amava estudar será através dos produtos de limpeza com
os quais limpará a casa, enquanto faz a bebê pegar no sono.
Teu marido será rígido. Precisará
fazer suas vontades. Com o tempo, vai até se converter para a religião dele. A
culpa não está naquela igreja é claro, mas no mau uso que as pessoas fazem
dela. Lá dentro, você terá certeza de que estará no caminho certo. E aprenderá
a confundir o fato de que está “conformada com a vida”, com felicidade. Até
mesmo os socos que seu marido lhe dará de vez em quando serão aceitos, sem
questionar. Apanhar é bom para amadurecer a mente.
Pelo mesmo motivo, baterá em sua
filha. Tapas cada vez mais fortes serão corretivos para fazer dela uma menina
de respeito. Sua doce Carolina. Irá, crescer, crescer... e deixar de ser tão
doce quanto fora na infância. Ela não irá aceitar toda a rigidez vinda do pai,
mas de você tão pouco receberá apoio.
Pois você terá medo. Já que verá
refletido nos olhos de sua Carolina a mesma paixão proibida que sentiu nos teus
olhos há anos. No momento em que vê-la de mãos dadas a uma garota, chamando de
romance aquele pecado imperdoável.
Você jamais poderá deixar que o marido
descubra sobre o namoro secreto da filha! Irá puni-la, castiga-la. Mas ela já
será maior de idade. Irá cuspir em seu rosto e gritar palavras grotescas,
retribuindo toda a falta de carinho com a qual você a tratou, e indo embora de
sua casa para sempre. Você não saberá se ela fugiu com a namorada, ou se está
perdida pela cidade. Encontrá-la será impossível. E a culpa será sua...
Seu marido ficará possesso. Você terá
perdido a filha dele! Os tapas serão mais fortes, e você passará a não
conseguir mais segurar as lágrimas. Não apenas porque os tapas doem, mas porque
sabe que perdeu sua filha no momento em que a impediu de viver pelo amor.
Com o tempo, sua mente cansada já não
mais se preocupará com o que é certo. Os antigos conhecimentos sobre química
permitirão que você sabiamente coloque as toxinas no café de seu homem. A morte
dele jamais a terá como suspeita. Você Simélia, será viúva. Mas ao contrário do
que pensa, a ida dele não a fará feliz.
Pois só então perceberá como os anos
se passaram. Quando, no velório de teu marido, assistir a chegada de sua
cunhada. A fantástica Clarice continua bela após tantas décadas longe de ti.
Mais bela ainda é a mulher que a acompanha, a qual ela chama de esposa, com a
qual é mãe de dois filhos. Os filhos de Clarice a fazem lembrar de Carolina. Ou
talvez, sejam apenas seus desejos de ter sido você a ter tido filhos com ela.
Mas, após tanto tempo, mamãe ainda
está certa. Terão sido mesmo os anos de comida esquentada no micro-ondas
responsáveis pelo câncer? Bom... tudo o que sei é que o tumor se espalha. E ao
mesmo tempo em que me derrota, é também minha única companhia. Pois há tempos
que é o único, além dos médicos, que entra em contato com meu corpo.
Estou viúva. Meu verdadeiro amor
superou-me há anos para encontrar os olhos de uma outra mulher. E já compreendo
que Carolina jamais irá voltar. Que motivos ela tem, afinal, pra sentir falta
da mãe?
Ah, Simélia, pois eu lhe digo com todo
o meu âmago... como eu queria que a garota que foi aos sete anos tivesse se
esforçado um pouco mais. Já não mais ligo para o que dizem os cientistas. Hoje,
queria eu que ela tivesse conseguido. Que se tornasse uma pomposa cientista, e
criasse a sonhada máquina do tempo. Pois somente com essa máquina dos sonhos,
cara Simélia, seria possível que eu lhe entregasse essa carta. Somente com ela
seria possível que você a lesse e descobrisse que a vida não precisa ser levada
conforme aquilo que lhe dizem que é o certo.
Mas não há tal máquina, Simélia. E não
há mais chances para nenhuma de nós duas. Então, gostaria apenas que soubesse de
uma coisa: Depois de tanto sofrimento, de tantas lágrimas... Eu ainda estarei
aqui. E pode ter demorado muito tempo, mas eu finalmente consigo enxergar a
beleza que há em você, garota. Você não é apenas inteligente e carismática, como
dizia mamãe. É uma mulher forte e madura, capaz de resistir aos piores
tormentos. Não há ninguém que lhe complete, Simélia. Pois você já é completa
por si só. Você é perfeita.
Eu só queria que pudesse saber
disso...
Desejo força e esperança. Você é uma guerreira,
garota.
Com abraços, de sua grande admiradora,
Simélia.