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Archive for fevereiro 2014

Rosalinda era uma singela habitante de uma cidade pacata. Destinada, assim como seus vizinhos, a vagar pela monótona rotina que a vida lhe proporcionava. Já em torno dos setenta anos de idade, possuía cabelos grisalhos, sempre presos num firme coque, que combinados aos óculos de lentes grossas e ao vestido bordado, lhe davam uma aparência materna e acolhedora.
Nunca tivera filhos. O marido falecera antes mesmo que pudesse lhe fornecer uma prole. Mas Rosalinda nunca deixara que tal fato a abatesse. Sem filhos para chamar de seus, fez dos vizinhos e conhecidos próximos suas crianças. Ajudava a todos da comunidade, exercendo trabalhos voluntários, cozinhando em festas de caridade, e sempre disposta a fornecer ajuda a qualquer um que precisasse de socorro. Ao passar pela rua todas as manhãs, a velha senhora recebia sorrisos e abraços de todos os cidadãos. Não havia ninguém que não a conhecesse e não a admirasse por sua bondade e fraterna simpatia.
Cozinhava seus bolos e tortas durante as manhãs, tricotava durante as tardes, e festava no intranquilo centro de idosos todas as noites com afáveis companheiros. Cozinhar, tricotar, bailar e prestar ajuda a quem precisasse. Tal rotina rodeava a vida de Rosalinda, a qual todos bem conheciam e tanto admiravam.
Mas disse um sábio amigo em formato de morsa certa vez que seres humanos são itens complexos, que não devem ser julgados por aquilo que fazem durante o dia, mas sim por aquilo que fazem nas madrugadas. Um indivíduo que se limita ao singelo ato de dormir, por exemplo, prova nada mais ser do que um reles idiota. Um indivíduo que se arreganha à fatídica arte de sonhar já demonstra certa aptidão para realizações, embora preguiça de levantar-se e realizá-las bem acordado. Um indivíduo que passa a noite sobre o efeito de álcool e drogas... é um bêbado drogado. Mas essa história não é sobre você, sobre seu irmão caçula, ou sobre a polêmica Lindsay Lohan. Essa história é sobre Rosalinda, e sobre o que ela fazia em suas madrugadas.
Mal sabiam os ingênuos cidadãos que a doce senhora mantinha um hobby em segredo. Algo que fornecia a sua vida um propósito, o qual a estimulava a levantar-se todas as noites, e utilizar-se da insônia habitual para uma prestativa atividade. E assim, toda noite, às exatas três e vinte e sete da madruga, Rosalinda saía de casa com sua mochila de apetrechos para caça... e matava pássaros.
Que singelo e suculento prazer ela sentia ao trucidar as pequenas bestas cantantes uma a uma, enquanto dormiam inocentemente em seus ninhos dispostos em árvores pela cidade. O som dos pios desesperados e o flutuar das penas pelos ares respingadas de sangue lhe permitiam desfrutar de um deleite indescritível, que a preenchia por breves segundos e lhe instigava a matar uma quantidade de aves cada vez maior.
Em alguns mirava o estilingue, outros acertava com um bastão espinhoso, os mais frágeis esquartejava com uma adaga rapidamente, e em locais isolados, onde nenhum cidadão poderia ouvi-la, arriscava-se a matá-los a longa distância com o rifle conivente. Por anos, exterminou os pássaros da cidade por incontáveis madrugadas, permitindo que os cidadãos despertassem todas as manhãs sem nenhum canto melódico a lhes perturbar.
Até que num belo dia, talvez não tão belo por sinal, e talvez não tão dia visto que o fato só se deu na noite escura, uma jovem a flagrou durante o ato. Os olhos de Rosalinda se arregalaram, e sua mente desesperou-se ao pensar em como explicaria o fato de que assassinar belas aves a fazia feliz. A jovem, contudo, não recuou assustada. Se aproximou e segurou as mãos da velha senhora, retirando o rifle de seus dedos e dizendo-lhe que tudo ficaria bem.
Seu nome era Doralice. Uma garota de fibra, coragem e carbono. Uma dessas pessoas especiais que, como citadas acima, se dispõem a fazer algo mais produtivo durante as madrugadas do que simplesmente dormir. De olhos de um azul celeste, cabelo castanho arenoso, e singela voz que acalmava Rosalinda em seu pranto. A garota disse a velha que matar pássaros era um vício que adquirira por falta de afeto. Mas que tal podia ser corrigido com sua ajuda e devida terapia.
A partir daquele dia, em todas as mínimas madrugadas, a jovem e a velha saíam juntas, não mais para matar pássaros, mas sim para enxergar nos pequenos seres o doce milagre da vida. Doralice lhe explicava em sábias palavras sobre como cada singular animal se relacionava com o ecossistema, sendo assim importante para a natureza como um todo. Os pássaros não apenas embelezavam os campos e ruas pela manhã, mas também cortavam céus e nuvens trazendo alegria, alimentando seus filhos em ninhos acolhedores, e constituindo famílias formadas de pios, afeto e penugem.
Foi após treze noites consecutivas que Doralice deu seu trabalho por finalizado.  Havia ensinado com eficiência tudo o que sabia à pródiga idosa. Rosalinda sorriu ao ver-se livre de seu vício, ciente de que não mais precisaria trucidar tão belas criaturinhas para se ver feliz.
Com extrema afeição, abraçou a jovem, agradecendo-lhe por tudo o que havia lhe ensinado.
Num sorriso mais que materno e num gesto triunfal, a velha senhora ergueu o rifle e acertou três tiros em cheio na cabeça de Doralice. O sangue pintou o gramado com o mais puro escarlate e refletiu o brilho da lua de maneira poética. Rosalinda sorriu orgulhosa diante do corpo da garota.
Nunca mais cometeria a atrocidade de assassinar pássaros... Matar pessoas era bem mais divertido.

Madrugas de Rosalinda

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