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Archive for novembro 2013

A história a seguir foi encontrada por meu amigo Chubble, escrita numa página rasgada de um diário a mercê do lixo hospitalar encontrado ao fundo do terreno de uma academia de artes cênicas. O papel continha digitais engorduradas, e um leve aroma de sorvete de limão. Contudo, Chubble insistiu que eu transferisse tais linhas para o público, na intenção não apenas de imortalizar sua mensagem, mas também na esperança de que algum humilde leitor conheça o significado de “tapulhice”.
(Os nomes do sorveteiro Rodrigues da Cunha e do garoto Bernardo Fernandes foram retirados da história para evitar maiores constrangimentos ou processos judiciais contra o paupérrimo escritor.)



Deleite. Quer palavra melhor do que essa? Que outras sílabas poderiam de forma tão singela representar o doce momento de contato entre o paladar e tal creme refinado? A cena intocável na qual meus clientes tão satisfatoriamente são invadidos pelo sabor gelado do melhor sorvete do bairro. Foi tal razão que me levara ao inscrever tais sete letras na lateral do carrinho. Quem disse que um mero vendedor de sorvetes não pode querer se expressar de forma poética? E é fato sabido por muitos que a palavra “Deleite” por si só soa mais poética do que certas estrofes que encontramos pela vida.
Mas deixemos deleites de lado, pois tal história não é sobre mim. Nem mesmo sobre os sorvetes que há anos vendia no mesmo ponto. Ambos são só circunstâncias que rodearam o jovem garoto. Bochechas com sardas, cachos castanhos, e língua bem solta aos oito de idade. Seu nome... nunca soube. Mas o descrevo como ninguém mais poderia. Pois só eu sei dos poderes que alcançou antes do fato. Só eu sei do mais importante... que não foi o fato... mas sim o efeito... (Não se preocupem, meus sorvetes não são tão complexos quanto o que costumo dizer por aí.)
Voltemos então ao primeiro dia, no qual os olhos esverdeados me fitaram de forma singela. Nunca gostei de crianças, mas sempre fingi adorá-las. Afinal, a maior parte do lucro de um sorveteiro vem da remota arte usada pelos jovens chamada “birra”.
Mas desacompanhado jazia o jovem garoto, me fitando como se desejasse apenas com os olhos me trucidar.
- Posso ajudá-lo? – indaguei, fazendo-o despertar do transe momentâneo.
- Ah, me desculpe... Estava pensando em qual dos sabores preciso escolher...
Fitei-o de sobrancelha erguida, e lhe entreguei o cardápio.
- Bom, as opções são muitas. Das mais variadas. Morango, creme, menta, chocolate... todos refinados com uma receita especial de família...
- Não são os sabores que importam, seu tapulho! – ele me repreendeu.
- Como é...? Tapulho?...
- Não estou em dúvida quanto aos sabores! Tenho oito anos e sou gordinho! É claro que quero o de chocolate! Mas o que eu quero não importa... preciso encontrar o Poder Secreto...
Ele desviou os olhos e voltou-se para o cardápio. Permaneci fitando-o com olhos confusos. As razões pelas quais nunca gostei de crianças pareciam dançar a minha frente.
- Você por acaso não teria a lista dos poderes em algum lugar, teria?
- Lista dos... garoto, eu não tenho tempo pra brincadeiras. Escolha logo o sabor que deseja.
- Ai, seu tapulho! Não conhece nem mesmo os poderes dos sorvetes que você vende?! É a história da sua família!
Soltei um suspiro pesaroso e contei até dez mentalmente, enquanto o insistente garoto permanecia me explicando:
- As receitas de sorvete da sua avó têm ingredientes mágicos especiais. Cada um dos sabores nos dá poderes diferentes, capazes de fazer coisas fantásticas acontecerem!
- Ok, garoto. A história é legal... mas de onde tirou essa ideia? – acabei cedendo uma risada.
- Não é só uma história. Sua avó era uma bruxa bondosa, que enfeitiçava os sorvetes para alegras as crianças. Minha mãe a conheceu há muitos anos, e contou tudo pra mim.
- E posso saber onde está sua mãe? Ela não devia deixar um garoto tão distraído sair por aí andando sozinho...
- Você ainda não acredita, né? Tô falando a verdade, moço! Seus sorvetes são mágicos! Minha mãe descobriu os poderes deles quando era criança, e me trouxe aqui uma vez quando eu era pequeno... Mas ninguém até hoje conseguiu encontrar o Poder Secreto... e eu vou achar...
- Poder Secreto? – rebati com indiferença - Garoto, acho que eu saberia se vendesse esse tipo de coisa no meu carrinho.
- Não se preocupe. Estou acostumado a pessoas não acreditarem em mim. Mas vou provar pra minha mãe que sou capaz de encontrar o Poder Secreto. Vou tomar todos os seus sabores de sorvete, até encontrá-lo... mesmo que isso gaste todo o tempo do mundo...
O pobre jovem claramente era perturbado, mas não recusaria vender mercadoria a um consumidor tão ávido por meus sorvetes. Foram necessários alguns minutos para que ele por fim optasse por groselha.
Deu-me o pagamento em moedas e partiu sem dizer coisa alguma.
Quase que no mesmo horário, no dia seguinte, retornou com o mesmíssimo olhar penetrante.
- E então? A groselha te deu algum poder fantástico?
- Você ainda não acredita em mim, não é mesmo, seu tapulho? – murmurou o jovem – Bom, infelizmente não é o Poder Secreto. Mas, assim como todos os outros, seu sorvete de groselha tem sim um poder especial. O poder da paixão. Funciona melhor do que poções do amor...
- Ora, essa! – exclamei em ironia – Não vá me dizer que o sorvete lhe arranjou uma namoradinha.
- Ainda sou muito novo pra isso, seu moço. Mas hoje na escola, durante o recreio, Bianca Fagundes deixou que eu sentasse do lado dela e segurou nas minhas mãos durante todo o tempo. Isso com certeza foi efeito do sorvete de groselha! É o poder da paixão!
- Magnífico. – ergui as sobrancelhas – Mas parece que não era esse o poder que procurava.
- Pois é... vou ter que experimentar mais um... escolho o de menta.
E o de menta a ele entreguei. Novamente, deu-me o pagamento em moedas e partiu sem dizer coisa alguma.
Passou-se o dia, passou-se a noite, e no mesmo horário matinal, surgiu o garoto a minha frente. Começava a gostar da brincadeira, e sorri ao lhe dizer:
- E então? Que poderes a menta lhe deu?
- Ultra velocidade! Você não faz ideia de como é um poder bacana! Ganhei de todos os meus colegas na aula de atletismo!
- Não me diga... quer dizer então que finalmente encontrou o que procurava?
- O quê? Não! Que tapulhice! Ser veloz é divertido, mas não chega nem perto do poder que eu realmente procuro!
- Mas garoto... o que lhe faz pensar que esse tal Poder Secreto realmente está entre os meus sorvetes?
- Minha mãe disse que estaria, e ela conheceu sua avó. Ela nunca esteve errada sobre nada, e não será a primeira vez.
- Bom... se insiste nessa ideia... qual sabor escolherá?
- Hmmm... o de limão, por favor.
E o de limão a ele entreguei. Outra vez, deu-me o pagamento em moedas e partiu sem dizer coisa alguma.
Mas eis que em tão próxima manhã surgia novamente, disposto a comprar um novo sabor.
- E então... o que me diz sobre o limão?
- Você não vai acreditar! Ele me deu o Poder da Inteligência! Aprendi toda a matéria da escola em apenas um dia, e fechei a prova de geografia! Os professores chegaram a me elogiar!
- Ora, essa... se eu soubesse que meus próprios sorvetes podiam me fornecer tamanha grandeza! – a cada vez, render-me a brincadeira do garoto parecia mais simplório e divertido – Mas e então? Era esse o poder que procurava?
- Ainda não. Vou ter que experimentar mais um.
E por dias tal rotina foi feita da mesma maneira. Passaram-se incontáveis manhãs, nas quais o garoto ao mesmo horário sempre surgia, contando-me sobre os poderes do último sabor escolhido e requerendo um sorvete diferente. Não podia negar... a cada dia, me afeiçoava pela criança. Nem mesmo me importava em entender o real significado de “tapulho”. Cheguei a temer que ele enfim dissesse ter encontrado o tão procurado sabor, e não mais me visitasse todas as manhãs.
       Juntos, passamos por quase todo o cardápio. Cereja, morango, chocolate, prestígio, goiaba, kiwi, flocos e até mesmo chiclete. E os poderes que o jovem dizia adquirir eram dos mais variados tipos... Energia Incessante, que o permitia manter-se acordado durante toda a noite. Vencedor dos Esportes, que o fazia invencível em qualquer jogo que se arriscasse a competir. Sorte Reluzente, na qual os pais decidiam lhe aumentar a mesada e na rua ele encontrava moedas perdidas. E vez ou outra, façanhas ainda mais ilógicas saíam de sua boca... ao afirmar que o de goiaba o havia feito flutuar, e que o de chiclete permitia que ele se teletransportasse.
                Mas por mais que os poderes lhe enchessem de alegria e boas histórias a contar, o jovem afirmava sempre estar ainda em busca do Poder Secreto, o qual, por mais que tentássemos, nunca conseguíamos acertar.
               - Os sabores de sorvete estão acabando. – adverti - Não restam muitos no cardápio...
               - Não se preocupe. Sinto que estamos chegando perto. Enfim... escolho o de amêndoas.
                Aquele foi o último sorvete que vendi. Jamais pude voltar a proporcionar qualquer tipo de deleite... pois a memória desta manhã se encontra para sempre no local mais impertinente de minhas lembranças.
               Acredito que o fator que me marcou profundamente não foi a tragédia em si. Não foi assistir os lábios do garoto se inchando com rapidez, enquanto sua garganta se fechava. Não foi tentar inutilmente salvá-lo, enquanto clamava por socorro até que uma ambulância aparecesse. Não foi nem mesmo receber mais tarde a notícia do Doutor Carlos, que duramente me disse que o pobre jovem possuía uma grave alergia a amêndoas.
              O que realmente me marcou foram as últimas palavras que pude ouvir dos lábios da criança. Caído na calçada, o garoto teve ainda tempo de dizer-me seus últimos devaneios, antes que sua garganta se fechasse.
               - Achei o Poder Secreto... Era esse... era esse o Poder...
            - Acalme-se! Acalme-se! Eu vou salvá-lo! Vai ficar tudo bem! – eu gritava em total desespero.
         - Não se preocupe. Era esse o poder que eu procurava. O poder do sorvete de amêndoas. Aquilo que eu quero há tanto tempo... – e foi então que seus lábios se movimentaram pela última vez – o poder de reencontrar minha mãe.

Relatos de um Sorveteiro Deleitado

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