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                “Há muitos e muitos anos, nas emaranhadas e úmidas terras de um bosque mais que distante, vivia um peculiar espécime de elfo travesso. Com olhos esverdeados tal qual a cor de seu gorro arrebitado, e um ossinho peculiar num dos ombros tão pontudo quanto as orelhas que despontavam dentre os cabelos castanhos bagunçados, passava incontáveis horas do dia fazendo teatro e poesia para os amigos da floresta.
Sabendo que a arte era talvez a magia mais poderosa de todas, apático o elfo se tornou no dia em que foi capturado, e levado em jaula numa carruagem de primeira chamada para um castelo de muros tão altos e rígidos quanto as normas que eram ditadas por quem lá vivia. Um castelo que, contra sua vontade, se tornou seu mais novo lar. As paredes cinzas e sem graça do deplorável local o causavam ânsia diariamente. E os humanos que pelos corredores rodeavam geravam no pobre elfo medo e talvez até um pouco de decepção.
Mas foi então que, num belo dia, o elfo conheceu uma bela condessa, de personalidade forte e pupilas acastanhadas de olhar tão forte quanto tal. A condessa enxergou no elfo algo que poucos enxergariam num ser tão paranormalmente bizarro. Viu em seu jeito desengonçado e em seus devaneios curiosos que ele possuía a incrível habilidade de declamar contações. E tão esperta a sábia condessa o admirou que logo tornou-se fiel amiga, e junto a um grupo de outros súditos fiéis, pintou as paredes de uma das salas do castelo, e fez com que  o elfo aprendesse a acreditar em sua própria magia. Magia esta com a qual contava histórias todos os dias, para as crianças da plebe.
O elfo e a condessa se tornaram artistas. Artistas num castelo cor de cinza. Mas bem mais do que isso, se tornaram amigos. E bem mais do que isso poderiam ser... Mas o elfo sempre um tanto bobo e com receio, acreditava que a condessa era-lhe muito diferente, e que mesmo que fosse sua amiga, somente uma flor de pólen alvejado pelo cupido seria capaz de fazer despertar nela algo mais forte do que amizade.
Mas tal flor só existia num reino distante... numa plantação de lírios onde vivia um humilde espantalho, cansado de sua vida pacata. Como que sempre ansioso para que algo fantástico em sua vida acontecesse, ainda que há muito tempo tivesse perdido a esperança.
Foi então que vinda dos deuses, emergiu entre a colheita uma belíssima criatura, envolta num manto negro que descia em sinuosas curvas pelo corpo e escondia em boa parte seu rosto, deixando à mostra lábios rosados de arredondado contorno, que formavam em uníssono uma silhueta de coração. Era uma Parca. Um ser místico enviado do Olimpo na intenção de em seu destino interferir. Ergueu ao espantalho uma das mãos e fez-lhe um convite para uma viagem fatídica em direção às terras do Sul.
Partiram os dois rumo ao desconhecido numa pomposa e cumprida carruagem, a qual portava em suas laterais o brasão de uma destemida águia. Ao longo do caminho, a Parca contava ao espantalho sobre a fatídica arte dos sonhos, sobre medos e desilusões, sobre alegrias e fantasticidades reservadas pelo destino. O espantalho, a cada dia da viagem, se tornava mais íntimo da misteriosa criatura, e mais fascinado pelo seu modo sorridente, carinhoso, confiante e principalmente... impulsivo de ser.
Quando chegaram ao seu destino, desembarcaram numa ilha de ares tão reviravoltos que tudo por ali parecia fora do comum. Os habitantes do local possuíam bizarros costumes, somados a uma peculiar e insistente mania de acreditar numa tal mágica oculta que existia naquelas terras. Haviam lendas que contavam sobre passeios à barcos misteriosos que uniam casais impensáveis em trajetos ao pôr do sol. Assim como rituais realizados por jovens nos quais se pingava álcool nos ouvidos de garotas que lhes chamassem a atenção. O clima bipolar da ilha, ora de bem, ora de mal, era tão inconstante e impulsivo que gerava até alucinações. Em tardes ensolaradas, habitantes chegavam a relatar que viam a Virgem Maria passeando de braços dados com o Diabo pela calçada.
                Pois então que tantas histórias e peculiaridades traziam até a ilha os mais longínquos visitantes. E eis que enquanto a parca e o espantalho se fugiam em tardes escondidas entre abraços e mordidas, de uma outra longa estrada vinha mancando um míope viajante. Um lavrador quase cego, em busca de uma lenda antiga que há tempos ouvira numa canção sobre um pequeno castelo nosso.
                Caminhando pelo mercado, em busca de orientação, foi imediatamente atraído ao ouvir o mais belo dos sons do reino. Suas pupilas se arregalaram de súbito no momento em que a tal intensa, serena e belíssima voz soou em seus ouvidos, num doce cantarolar de uma música desconhecida, que recitava em versos promessas sobre nunca desistir. Procurou por aquela voz fantástica, até encontrar sua dona numa das tendas da vila.
                Era uma belíssima artesã, de feições graciosas e maçãs do rosto num leve formato arredondado que chegavam a formar simpáticas e airosas pseudo-bochechas. Cantava durante as tardes, erguendo a voz em tons graves e agudos, e encantando a todos os viajantes com seu timbre inigualável.
Fascinado por aquela voz, o míope se aproximou com certo receio. A sábia artesã, contudo, tirou de dentro dele toda a sua insegurança. Simpatizou-se pelo viajante e delo logo se aproximou. Ensinou-o a enxergar com algo mais profundo do que os olhos. Disse-lhe como era possível enxergar com o coração.
Guiou o quase cego pelas ruas e vielas da abstrusa cidade, ensinando-lhe a esplêndida capacidade de confiar em alguém. De tavernas que serviam massas cupim-alhenosas, à banquinhos de pedra escondidos entre árvores que se isolavam do resto do mundo, passando por estacionamentos onde uma afável carruagem negra os servia de refúgio, e até uma pequena vila onde havia quartos de luxo dentro dos quais as horas passavam mais rápido do que o normal. Juntos, passaram horas, dias e semanas que se desenrolaram num misto de afeto e paixão.
A artesã de bela voz ensinou ao míope que podia muito bem enxergar a vida de forma confiante. Talvez o mais importante... ensinou-o a ter fé em seus sonhos. E findou os dias de passeio, dando-lhe de presente um óculos de cobre com lentes mágicas, que o permitiam enxergar as coisas como são de verdade. O não mais míope viajante não dispunha de dinheiro para dar-lhe em troca, mas ainda assim fez questão de pagar-lhe em retribuição. Deu a ela um singelo anel, que dispunha de uma pedra no topo, em formato exato de coração.
Naquele singelo ato, a magia que o viajante tanto procurava enfim despertou-se nas terras nefastas do reino curioso. O segredo oculto em feitiços previa que no dia em que o mais puro dos amores conquistasse o coração da impulsiva artesã, todas as terras e reinos vizinhos seriam enfim visitados e conquistados pela magia mais forte de todas.
Magia esta que se expandiu e alcançou todos os habitantes do continente. Magia que envolveu a sábia Parca e o espantalho, e que enfim intercedeu na vida do elfo e da condessa. Magia que inacreditavelmente era mais forte do que a arte. Falava mais que a poesia. Encantava mais que o teatro. Contava mais histórias do que se podia imaginar. E resistia a qualquer amadurecência vinda do destino. Magia esta... que era o amor.
Amor que não brotava de feitiços. Brotava de uma entrega árdua. Nascia com tempo e crescia com cautela, regado por confiança, carinho, companheirismo e honestidade. E por anos todo o continente viveu em prosperidade. E ainda hoje... os descendentes de todos os súditos, elfos, plebeus e seres místicos que lá habitam, são diariamente invadidos por tal sentimento que estimula qualquer ingênuo a se levantar de manhã só pra vir molhar os pés na primeira onda.”
                - Ele... ele escreveu isso? – meus lábios chegam a tremular um pouco ao terminar de ler o texto e indagar à professora a minha frente.
                - Sim. – profere a rígida Dona Marta com o semblante fechado – Seu filho novamente voltou a desobedecer as orientações disciplinares, e escreveu mais um bizarro conto lúdico no lugar da redação. Eu pedi para as crianças uma dissertação que debatesse sobre a importância das relações de afeto familiares. E ele me veio com isso aí.
                Ao meu lado, as mãos de minha esposa apertam meus dedos de leve, e noto que ela tenta com incerteza explicar a situação:
                - Dona Marta, nós já conversamos com ele sobre isso...
                - Seu filho não leva os estudos a sério! Tudo para ele não passa de uma tola brincadeira sem sentido! Vive com a cabeça nas nuvens. Não obedece às atividades propostas. Já tentamos de tudo com ele... mas ele insiste em não se encaixar nos parâmetros.
                Minha mulher fita meus olhos de relance. Há tempos que somos chamados na escola para ouvir reclamações de atitudes insensatas e impulsivas vindas de nosso garoto de dez anos. A redação escrita por ele, redigida nas folhas que Dona Marta há pouco colocou em minhas mãos, parece ter sido a gota d’água para a professora impaciente.
                - Não se preocupe. – é o que posso dizer à severa mulher – Nós vamos ter uma conversa séria com ele.
                - Onde ele está? – pergunta minha esposa.
                - Tive que dar-lhe uma advertência por indisciplina, e pedi que a professora da turma de alunos de reforço o mantivesse na sala enquanto me reunia com os senhores.
                - Se isso é tudo o que tem pra nos dizer... – ela se levanta e puxa meu braço esquerdo – vamos levá-lo pra casa agora.
                A professora se levanta a nossa frente, e nos guia ao longo do corredor. Durante o trajeto até a sala, noto que os lábios de minha esposa estão franzidos, e as narinas infladas, como sempre acontece quando somos chamados até a escola e acusados de ter um filho lunático em excesso.
                Dona Marta por fim caminha até a porta da sala da turma de reforços, e gira a maçaneta. Me aproximo da soleira ao lado de minha mulher e espero ver meu menino sentado num canto de braços cruzados e expressão emburrada por ter levado uma nova advertência disciplinar.
                Mas não é isso o que vemos a nossa frente. A surpresa nos invade ao notarmos que toda a turma de alunos da aula de reforço, assim como a suposta adulta que seria a professora, encontra-se sentada em círculo pela sala, com os olhos atentos à apresentação que ocorre no centro. Com um pedaço de caderno em suas mãos, e uma cartola improvisada com jornal em sua cabeça... lá está ele.
                Nosso filho.
Com uma facilidade de discurso incrível para um garoto de apenas dez anos, ele relata aos colegas e à professora os últimos detalhes de alguma das histórias saídas de sua mente:
                - E assim, a madastra e os três porcos mosqueteiros entenderam que era errado roubar as canetas do colega. E todos do reino das lapiseiras viveram felizes para sempre. E essa história aqui, entrou por uma porta e saiu por outra... e quem quiser que conte outra!
                Ele se curva em agradecimento e todos os alunos o aplaudem. Não posso deixar que um sorriso imenso escape de meus lábios ao ver aquela cena.
                - O que está acontecendo aqui? – Dona Marta interfere num tom já reprendedor.
                A professora de reforço se levanta do meio da roda e põe-se a explicar com rapidez.
                - Oh, sim, Marta! Aproveitei que ele estava aqui, e deixei que os alunos aproveitassem uma das histórias de nosso pequeno grande contador!
                - Como é? Esta aula é para reforço de gramática e estudo de linguagens! E não para incentivar a cabeça sem limites desse garoto!
                - Cabeça sem limites? – a professora recua com estranheza – Marta, o garoto é brilhante. Ele sabe contar uma história como ninguém. Os colegas são fascinados por ele.
                Os olhos de minha esposa vêm de encontro aos meus e sorrimos um para o outro de forma orgulhosa.
                - Pai, mãe! – ele logo grita ao ver-nos do outro lado da sala e corre até nós num abraço impulsivo.
                Juntos, abraçamos nosso garoto com a mesma intensidade, enquanto a ríspida Marta ainda nos fita num olhar seco. É então que minha esposa logo se levanta, e faz por fim as honras de desentalar aquilo que lhe prende a garganta.
                - Você viu o que aconteceu aqui, Dona Marta? Parece que as habilidades consideradas “desvirtuadas” de meu filho conseguem prender mais a atenção dos alunos do que as aulas ministradas pela senhora. Ou vai me dizer que alguma vez já conseguiu reunir todas as crianças sentadas em círculo com tamanha atenção durante uma explicação?
                - Ora, essa! – a mulher rebate com arrogância - É muito fácil pro garoto prender a atenção dos colegas colocando uma cartola de papel na cabeça e contando histórias absurdas sobre monstros e duendes.
                - Pelo contrário, professora. – minha boca profere com firmeza – Não é fácil de maneira alguma. É extremamente difícil. Criar coragem para mostrar todas as ideias que possui guardadas em sua mente, e expressá-las através da arte... isso é um trabalho perigoso. Pode vir a render críticas e humilhações. E muitas vezes o pobre coitado pode acabar não sendo bem compreendido. Meu filho faz o que faz pelo amor ao que acredita. Por isso... ele conta histórias. Histórias que ele espera que inspirem os colegas a acreditar que a vida pode ser levada desse modo... com paixão e confiança.
                - Está mesmo me dizendo isso? Acredita que a indisciplina de seu filho é uma espécie de... método educativo?
                Minha esposa e eu soltamos uma leve risada, como se a resposta da mulher significasse para nós dois uma pequena piada interna.
                - Dona Marta, há tempos lidamos com gente como a senhora. – minha esposa infere com firmeza – Gente que se prende a paradigmas, e se impede de enxergar as coisas de outra maneira. Se tivesse lido com atenção à redação do meu filho, veria que ele dissertou sobre tudo aquilo que pediu. Ele contou-lhe sobre o requisito mais crucial para a formação de uma família. Contou-lhe sobre o amor. Aquele tipo de amor puro e honesto vindo de um casal, que inspira outras pessoas a viver da mesma maneira.
                - A diferença é que ele escreve com paixão... do mesmo modo que o ensinamos a viver a vida. – complemento segurando numa das mãos de meu pequeno escritor com força – Mas não se preocupe. Você ainda tem bastante tempo pra poder aprender com ele.
                Com sorrisos orgulhosos em nossos semblantes, minha mulher e eu seguramos lado a lado nas mãos de nosso filho e o levamos pelo corredor em direção a saída.
                - Este foi um dos melhores textos que você já escreveu. – murmuro com orgulho.
                - Ah, pai, foi você que me contou quase todas essas histórias. – ele rebate em passos saltitantes - O conto do elfo e da condessa, da parca e do espantalho... eu só escrevi tudo aquilo que me conta desde pequeno.
                - Bom... parece que você realmente tem uma cabeça tão louca e viajada quando a do seu pai. – minha esposa murmura em seu costumeiro sorriso apaixonado.
                - Sem falar nas atitudes inconstantes e impulsivas que herdou da sua mãe. – rebato num sorriso que reflete afeto ainda maior – Pois é, parece que você herdou nossas melhores qualidades.
                - Tudo bem, tudo bem... Agora, podemos ir comer pastel? – ele pede apertando o estômago - Eu tô numa fome...
                Rimos em conjunto e adentramos o carro no estacionamento. Peço a ela que dirija dessa vez, pra que eu possa relembrar os velhos tempos. Antes mesmo que ela dê a partida, o pequeno Miguel já fecha os olhos e adormece no banco de trás.
                - É... parece que temos um soldado cansado hoje. – rio, enquanto ligo o aparelho de som.
                Mesmo após tantos anos terem se passado, a voz de Jason Mraz ainda sai das caixas acústicas cantando “I won’t give up” e nos faz sorrir olhando um para o outro. Minha esposa então volta os olhos para o trânsito enquanto dirige, e solta um suspiro que soa como um misto de sensações satisfatórias.
                - Ele está se tornando um Contador de histórias incrível.
                - Nunca pensei que ele levasse tão a sério todas as histórias que eu lhe contava. – murmuro numa expressão contente - Hoje ele me mostrou que se lembrava de cada uma delas.
                - Ele tem pelas suas histórias o mesmo apreço que eu sempre tive. – ela me responde com um sorriso – Sabe que pra mim você sempre foi o melhor Contador que existe.
                Ainda hoje meus olhos são inundados por lágrimas quando vejo o modo como ela me enxerga. Ainda hoje meu coração bate mais forte sempre que ela me enxerga pelo que sou de verdade. Ainda hoje ela me faz confiar em mim mesmo, e amá-la mais e mais a cada dia.
                - Acontece que as histórias não são somente minhas. Eu tive ajuda pra escrever cada uma delas.
               - É claro que teve... – ela brinca num sorrisinho orgulhoso – Toda história precisa de uma princesa, não é mesmo?
                Respondo me aproximando e dando-lhe um beijo no rosto. Ela observa o reflexo de Miguel deitado no banco traseiro e suspira mais uma vez, antes de perguntar:
                - Você acha que ele sabe?
                Não entendo a pergunta de imediato.
                - Sabe... o quê?
                - Você acha que ele sabe... – ela volta a dizer – que as histórias são reais... e que ele é o final de todas elas?
                Demoro alguns segundos para responder. Fito por um instante o reflexo de nosso garoto pelo retrovisor, mas meus olhos são então direcionados ao anel que ela ainda tem em seu dedo. O aro com a pedrinha de coração no topo, que repousa sobre o volante do carro, na pele de minha artesã.
                Por fim, esboço mais uma vez um sorriso que expressa minha extrema felicidade.
                - Sim, meu amor... Ele sabe, com certeza.
               E sabia... que do mesmo modo que era o final de muitas histórias... ele era também o início de muitas outras, que entravam e saíam por portas diversas, mas preenchiam um livro de páginas fantásticas que não se findava jamais.

De contações e anéis

Rosalinda era uma singela habitante de uma cidade pacata. Destinada, assim como seus vizinhos, a vagar pela monótona rotina que a vida lhe proporcionava. Já em torno dos setenta anos de idade, possuía cabelos grisalhos, sempre presos num firme coque, que combinados aos óculos de lentes grossas e ao vestido bordado, lhe davam uma aparência materna e acolhedora.
Nunca tivera filhos. O marido falecera antes mesmo que pudesse lhe fornecer uma prole. Mas Rosalinda nunca deixara que tal fato a abatesse. Sem filhos para chamar de seus, fez dos vizinhos e conhecidos próximos suas crianças. Ajudava a todos da comunidade, exercendo trabalhos voluntários, cozinhando em festas de caridade, e sempre disposta a fornecer ajuda a qualquer um que precisasse de socorro. Ao passar pela rua todas as manhãs, a velha senhora recebia sorrisos e abraços de todos os cidadãos. Não havia ninguém que não a conhecesse e não a admirasse por sua bondade e fraterna simpatia.
Cozinhava seus bolos e tortas durante as manhãs, tricotava durante as tardes, e festava no intranquilo centro de idosos todas as noites com afáveis companheiros. Cozinhar, tricotar, bailar e prestar ajuda a quem precisasse. Tal rotina rodeava a vida de Rosalinda, a qual todos bem conheciam e tanto admiravam.
Mas disse um sábio amigo em formato de morsa certa vez que seres humanos são itens complexos, que não devem ser julgados por aquilo que fazem durante o dia, mas sim por aquilo que fazem nas madrugadas. Um indivíduo que se limita ao singelo ato de dormir, por exemplo, prova nada mais ser do que um reles idiota. Um indivíduo que se arreganha à fatídica arte de sonhar já demonstra certa aptidão para realizações, embora preguiça de levantar-se e realizá-las bem acordado. Um indivíduo que passa a noite sobre o efeito de álcool e drogas... é um bêbado drogado. Mas essa história não é sobre você, sobre seu irmão caçula, ou sobre a polêmica Lindsay Lohan. Essa história é sobre Rosalinda, e sobre o que ela fazia em suas madrugadas.
Mal sabiam os ingênuos cidadãos que a doce senhora mantinha um hobby em segredo. Algo que fornecia a sua vida um propósito, o qual a estimulava a levantar-se todas as noites, e utilizar-se da insônia habitual para uma prestativa atividade. E assim, toda noite, às exatas três e vinte e sete da madruga, Rosalinda saía de casa com sua mochila de apetrechos para caça... e matava pássaros.
Que singelo e suculento prazer ela sentia ao trucidar as pequenas bestas cantantes uma a uma, enquanto dormiam inocentemente em seus ninhos dispostos em árvores pela cidade. O som dos pios desesperados e o flutuar das penas pelos ares respingadas de sangue lhe permitiam desfrutar de um deleite indescritível, que a preenchia por breves segundos e lhe instigava a matar uma quantidade de aves cada vez maior.
Em alguns mirava o estilingue, outros acertava com um bastão espinhoso, os mais frágeis esquartejava com uma adaga rapidamente, e em locais isolados, onde nenhum cidadão poderia ouvi-la, arriscava-se a matá-los a longa distância com o rifle conivente. Por anos, exterminou os pássaros da cidade por incontáveis madrugadas, permitindo que os cidadãos despertassem todas as manhãs sem nenhum canto melódico a lhes perturbar.
Até que num belo dia, talvez não tão belo por sinal, e talvez não tão dia visto que o fato só se deu na noite escura, uma jovem a flagrou durante o ato. Os olhos de Rosalinda se arregalaram, e sua mente desesperou-se ao pensar em como explicaria o fato de que assassinar belas aves a fazia feliz. A jovem, contudo, não recuou assustada. Se aproximou e segurou as mãos da velha senhora, retirando o rifle de seus dedos e dizendo-lhe que tudo ficaria bem.
Seu nome era Doralice. Uma garota de fibra, coragem e carbono. Uma dessas pessoas especiais que, como citadas acima, se dispõem a fazer algo mais produtivo durante as madrugadas do que simplesmente dormir. De olhos de um azul celeste, cabelo castanho arenoso, e singela voz que acalmava Rosalinda em seu pranto. A garota disse a velha que matar pássaros era um vício que adquirira por falta de afeto. Mas que tal podia ser corrigido com sua ajuda e devida terapia.
A partir daquele dia, em todas as mínimas madrugadas, a jovem e a velha saíam juntas, não mais para matar pássaros, mas sim para enxergar nos pequenos seres o doce milagre da vida. Doralice lhe explicava em sábias palavras sobre como cada singular animal se relacionava com o ecossistema, sendo assim importante para a natureza como um todo. Os pássaros não apenas embelezavam os campos e ruas pela manhã, mas também cortavam céus e nuvens trazendo alegria, alimentando seus filhos em ninhos acolhedores, e constituindo famílias formadas de pios, afeto e penugem.
Foi após treze noites consecutivas que Doralice deu seu trabalho por finalizado.  Havia ensinado com eficiência tudo o que sabia à pródiga idosa. Rosalinda sorriu ao ver-se livre de seu vício, ciente de que não mais precisaria trucidar tão belas criaturinhas para se ver feliz.
Com extrema afeição, abraçou a jovem, agradecendo-lhe por tudo o que havia lhe ensinado.
Num sorriso mais que materno e num gesto triunfal, a velha senhora ergueu o rifle e acertou três tiros em cheio na cabeça de Doralice. O sangue pintou o gramado com o mais puro escarlate e refletiu o brilho da lua de maneira poética. Rosalinda sorriu orgulhosa diante do corpo da garota.
Nunca mais cometeria a atrocidade de assassinar pássaros... Matar pessoas era bem mais divertido.

Madrugas de Rosalinda

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