Já fazem três anos, sete meses,
oito dias e treze horas que me contaram tal história. Mas acredito que no
momento em que outro alguém se puser a lê-la, já se haverá passado bem mais.
Contada dos lábios de Dona Rita, que tem por hábito mastigar folhas de hortelã
enquanto conta seus casos, tal história se inicia num dia de céu límpido e
instigante, no qual uma vaca quadrúpede de nome Solange ingeriu algo mais do
que o pasto costumeiro.
O pasto que existe na história
pertencia ao Senhor Gilmar, que era fumante, e habitava a cidade de Fatiganha,
um local pacato onde há tempos não se passava trupes de circo nenhum. Solange,
a quadrúpede, havia recebido seu nome em homenagem a sogra de Gilmar, que não
era quadrúpede, mas mugia como tal. Uma vaca de expressão abatida e movimentos
cotidianos repetitivos, destinada a vagar pelo pasto e ser ordenhada todas as
manhãs pelas mãos de Olavo, o empregado prestes a se casar com Vanessa, a
atraente filha mais velha do vizinho.
Foi então que no já citado dia de
céu límpido e instigante, Solange (a vaca, e não a sogra) acidentalmente
ingeriu um objeto curioso. Seus relatos afirmam que o sabor se assemelhava a
metal enferrujado, em fusão com balas de caramelo. Mas o que certamente chamou
a atenção do animal não foi o sabor, mas sim o curioso e repetitivo som que o
objeto realizava. Um sonoro e aconchegante “Tic-tac”, pertencente a um peculiar
modelo de relógio que apenas era produzido em fazendas da Indonésia.
Foi Olavo, o empregado noivo de
Vanessa, quem primeiro percebeu o som que agora era emitido do interior da
bovina. Assustado, chamou às pressas pelo patrão, Gilmar, que, como já disse,
era fumante. Ambos se fascinaram com o constante contar dos segundos que a vaca
agora chefiava. A surpresa só foi maior quando Solange emitiu um mugido
angustiante, ao meio-dia e quarenta e cinco, a hora exata em que o frango
assado por Dona Maria, a mulher de Gilmar, que ouvia músicas francesas enquanto
cozinhava, atingiu o ponto exato para degustação.
A família de Gilmar se espantou
ao ver como a vaca sabiamente havia previsto o horário em que o frango estaria
pronto, e puseram-se a fazer diversos testes com a bovina. Entre os constantes tiques
e taques do relógio em seu estômago, Solange emitia idênticos mugidos em
diferentes momentos do dia, cada qual com o seu significado. Primeiramente,
indicou o horário exato para que Dona Maria retirasse as roupas do varal. Em seguida,
mugiu avisando que Olavo estava atrasado para o almoço com os pais de Vanessa.
Lembrou a Gilmar quando deu-se a hora de buscar os filhos na escola. Avisou a
Maria que a novela já havia começado. E por fim, mugiu indicando que era hora
para que todos fossem para a cama.
Por dias, a família e os
empregados de Gilmar viveram seguindo os constantes mugidos de Solange, que em
sua mais nova função de relógio, os lembrava de todos os seus compromissos e
lhes impedia de atrasar um segundo que fosse. A vaca ditava os horários de
acordar, trabalhar, almoçar, estudar e cortar as unhas do pé. Gilmar passou a
ser conhecido como o homem fumante mais pontual da cidade, assim como sua
esposa, Dona Maria, tornou-se a ouvinte de músicas francesas mais responsável e
eficaz em suas tarefas.
Contudo, a notícia da vaca
relógio logo se espalhou por toda Fatiganha. Os vizinhos de Gilmar passaram a
visitar Solange, a vaca, que lhes mugia lembrando-lhes sempre das dezenas de
compromissos marcados pontualmente dos quais não podiam se esquecer. Fascinado
ao ouvir as histórias da sábia bovina, Ferdinando Soslaio, o prefeito da
cidade, que traía a esposa com a mulher do padeiro, foi visitar a família de
Gilmar. Ofereceu-lhe uma boa quantia de dinheiro em troca da vaca. Dinheiro
este que havia sido desviado das reformas do hospital público no qual o Doutor
Renato, que era canhoto, atendia seus pacientes.
Sem saber das canhotas origens do
pagamento, Gilmar aceitou o acordo e vendeu a vaca ao prefeito Ferdinando, que
voltou a trair a esposa com a mulher do padeiro naquele mesmo dia. Solange, a
vaca, foi colocada num pedestal de mármore polido na praça central da cidade.
Pedestal este que havia sido esculpido por Serafim, que era artista há anos por
puro prazer de esculpir.
Em seu novo posto, a vaca passou
a trabalhar como relógio de toda a cidade. Emitia seus melancólicos mugidos
todos os dias, nos quais lembrava os cidadãos dos horários para acordar,
trabalhar, almoçar, estudar, ir ao banheiro, mascar chicletes, levar o lixo
para fora, preparar o jantar, fazer as tarefas escolares, assistir ao jornal
local, trabalhar mais um pouco, dormir e acordar novamente no dia seguinte. A
cidade de Fatiganha tornou-se conhecida por possuir os cidadãos mais
responsáveis e pontuais de toda a América Latina, a qual engloba torno de vinte
países conhecidos pelos seres humanos.
Por meses, Solange, a vaca, ditou
os horários da cidade. O relógio em seu interior jamais parava de funcionar.
Com o tempo, tornou-se conhecida e respeitada por toda a população das
redondezas. Turistas e repórteres apareciam todos os dias, fascinados pela
pontualidade intrínseca da malhada criatura.
Solange, a vaca, não apenas
tornou a cidade pontual e organizada. Trouxe investidores e consumidores em
excesso, os quais enriqueceram todos os comerciantes de Fatiganha. Aglomerações
de humanos amontoavam-se em torno do animal, venerando-lhe como uma verdadeira
rainha bovina.
Eis aqui o momento da história em
que Dona Rita fez uma pausa. Foram necessários alguns segundos para que ela
mastigasse mais um pouco de folhas de hortelã e contasse o trágico fim que teve
a história de Solange, a vaca.
Hoje, após anos passados do
ocorrido, a polícia concluiu o motivo da tragédia. Mas naquela época, ninguém fazia
a mínima ideia do que causara a grande explosão. Afinal, tão fissurados pelos
constantes tiques e taques do relógio, nenhum cidadão jamais preocupou-se em
descobrir o que o relógio realmente era. Pois o relógio não era um relógio. Ou
ao menos não um relógio comum. O que Solange, a vaca, havia engolido no pasto
era, na verdade, uma bomba. Programada pacientemente para explodir quando uma
multidão de seres humanos se aglomerasse a seu redor.
A potente potência da bomba não
devastou apenas os quatro estômagos de Solange, a vaca, mas também toda a área
de Fatiganha, dizimando toda a população. Gilmar, Maria, Olavo, Vanessa,
Ferdinando Soslaio, Serafim, Doutor Renato, o padeiro, a mulher do padeiro e
todos os outros pontuais e responsáveis cidadãos foram mortos num piscar de
olhos bovinos.
Dona Rita terminou a história sem
me fornecer maiores explicações. Indignei-me, perguntando impaciente sobre os
detalhes da bomba relógio, da explosão e das consequências desastrosas. Rita
enfureceu-se e me fitou de modo impaciente. “Como pode, após ouvir esta
história, continuar a me fazer as perguntas erradas?” disse enraivecida. Não
entendi a princípio o que ela queria dizer. Naquele dia, fui embora de sua casa
com a cabeça perdida em pensamentos obscuros.
Foram necessários três anos, sete
meses, oito dias, doze horas e um texto para que eu finalmente entendesse quais
foram as razões que levaram à tragédia de Fatiganha. Entendo enfim que os
Fatiganhenses são a prova viva (agora morta) da estupidez humana. Deram tanta atenção a uma vaca, e se esqueceram de seus próprios detalhes. A relevância de suas vidas não estava no fato da bomba-relógio ou da repercussão de Solange. Mas sim nos
fatos de que Gilmar era fumante, Maria ouvia músicas francesas, Olavo era noivo
de Vanessa, Vanessa era filha do vizinho, Ferdinando traía a esposa com a
mulher do padeiro, Renato era canhoto, Serafim era artista por paixão, e que a
América Latina engloba vinte países conhecidos por humanos. Tão vidrados em
seguir os mugidos melancólicos da vaca, os Fatiganhenses não levaram em conta o
detalhe mais crucial: Vacas são extremamente traiçoeiras, e nenhuma delas
poderia levar a cidade a um caminho que não fosse a tragédia.
Sorrio então ao me lembrar de
Dona Rita, mas não apenas de Rita em si. Lembro-me agora de Dona Rita, que mastigava
folhas de hortelã. Pois humanos não são um. Humanos são sempre “um que”. Mesmo
que um que venere uma vaca.
Meus dedos param de digitar e me
assusto de repente. Ouço então um sonoro e aconchegante “Tic-tac” dentro de
mim. Não sei de onde veio, nem o que significa. Mas sei que meu fim é o mesmo
que o de Solange (a sogra, não a vaca, que faleceu há três meses). Talvez,
leitor, quando terminar este texto, minha bomba-relógio já tenha explodido.
Peço então que ouça seus próprios tiques e taques e seja “um que” dê orgulho.
Afinal, cedo ou tarde, a bomba-relógio dentro de seu estômago também irá
explodir, quer você seja Solange, ou um mero Fatiganhense.