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Archive for agosto 2013

eram nove e meia quando olhei para ela.
que era bela, qualquer um
poderia dizer.
mas o que me atraiu, na verdade,
não foi seu rosto, ou seu corpo
mas o jeito que virava a página
como se o livro fosse um amigo
cachos ruivos e mãos delicadas.
de tão fascinado, fiquei
de castigo.

e todos os dias, lá repetia.
Sentava
eu,
e aguardava.
Ansiava a chegada
da ruiva
que nem sempre aparecia,
mas consumia cada reles sonho
meu

passaram-se meses, passaram-se anos.
esperar se tornou rotina.
tentei descobrir seu nome.
até mesmo o telefone.
teu horário não sabia
e me fiz então de otário
lhe tentando
poesia,
mas não sabia
rima com ruiva.
e todo dia a decepção.
se a loba não vai, o lobo não uiva.

a ruiva nunca apareceu.
mesmo por anos eu tendo esperado.
mas o destino intercedeu,
um dia Judite sentou-se ao meu lado.
conversas, risadas, histórias e beijos.
foi com Judite que me casei.
perversa, malvada, se afogue no Tejo,
na imagem da ruiva eu rabisquei.

mas eis do tal momento, - que surpresa - no dia do casamento,
quando Judite subiu ao altar,
meus olhos fitaram a quarta fileira.
sentada ali pra me ver casar,
a ruiva piscava de forma certeira.

não gritei, não xinguei,

e nem mesmo deveria.
sussurrei um singelo “obrigado”.
se não fosse a ruiva vadia
eu nunca teria me casado.



A Ruiva que me ca(u)sou

Já fazem três anos, sete meses, oito dias e treze horas que me contaram tal história. Mas acredito que no momento em que outro alguém se puser a lê-la, já se haverá passado bem mais. Contada dos lábios de Dona Rita, que tem por hábito mastigar folhas de hortelã enquanto conta seus casos, tal história se inicia num dia de céu límpido e instigante, no qual uma vaca quadrúpede de nome Solange ingeriu algo mais do que o pasto costumeiro.
O pasto que existe na história pertencia ao Senhor Gilmar, que era fumante, e habitava a cidade de Fatiganha, um local pacato onde há tempos não se passava trupes de circo nenhum. Solange, a quadrúpede, havia recebido seu nome em homenagem a sogra de Gilmar, que não era quadrúpede, mas mugia como tal. Uma vaca de expressão abatida e movimentos cotidianos repetitivos, destinada a vagar pelo pasto e ser ordenhada todas as manhãs pelas mãos de Olavo, o empregado prestes a se casar com Vanessa, a atraente filha mais velha do vizinho.
Foi então que no já citado dia de céu límpido e instigante, Solange (a vaca, e não a sogra) acidentalmente ingeriu um objeto curioso. Seus relatos afirmam que o sabor se assemelhava a metal enferrujado, em fusão com balas de caramelo. Mas o que certamente chamou a atenção do animal não foi o sabor, mas sim o curioso e repetitivo som que o objeto realizava. Um sonoro e aconchegante “Tic-tac”, pertencente a um peculiar modelo de relógio que apenas era produzido em fazendas da Indonésia.
Foi Olavo, o empregado noivo de Vanessa, quem primeiro percebeu o som que agora era emitido do interior da bovina. Assustado, chamou às pressas pelo patrão, Gilmar, que, como já disse, era fumante. Ambos se fascinaram com o constante contar dos segundos que a vaca agora chefiava. A surpresa só foi maior quando Solange emitiu um mugido angustiante, ao meio-dia e quarenta e cinco, a hora exata em que o frango assado por Dona Maria, a mulher de Gilmar, que ouvia músicas francesas enquanto cozinhava, atingiu o ponto exato para degustação.
A família de Gilmar se espantou ao ver como a vaca sabiamente havia previsto o horário em que o frango estaria pronto, e puseram-se a fazer diversos testes com a bovina. Entre os constantes tiques e taques do relógio em seu estômago, Solange emitia idênticos mugidos em diferentes momentos do dia, cada qual com o seu significado. Primeiramente, indicou o horário exato para que Dona Maria retirasse as roupas do varal. Em seguida, mugiu avisando que Olavo estava atrasado para o almoço com os pais de Vanessa. Lembrou a Gilmar quando deu-se a hora de buscar os filhos na escola. Avisou a Maria que a novela já havia começado. E por fim, mugiu indicando que era hora para que todos fossem para a cama.
Por dias, a família e os empregados de Gilmar viveram seguindo os constantes mugidos de Solange, que em sua mais nova função de relógio, os lembrava de todos os seus compromissos e lhes impedia de atrasar um segundo que fosse. A vaca ditava os horários de acordar, trabalhar, almoçar, estudar e cortar as unhas do pé. Gilmar passou a ser conhecido como o homem fumante mais pontual da cidade, assim como sua esposa, Dona Maria, tornou-se a ouvinte de músicas francesas mais responsável e eficaz em suas tarefas.
Contudo, a notícia da vaca relógio logo se espalhou por toda Fatiganha. Os vizinhos de Gilmar passaram a visitar Solange, a vaca, que lhes mugia lembrando-lhes sempre das dezenas de compromissos marcados pontualmente dos quais não podiam se esquecer. Fascinado ao ouvir as histórias da sábia bovina, Ferdinando Soslaio, o prefeito da cidade, que traía a esposa com a mulher do padeiro, foi visitar a família de Gilmar. Ofereceu-lhe uma boa quantia de dinheiro em troca da vaca. Dinheiro este que havia sido desviado das reformas do hospital público no qual o Doutor Renato, que era canhoto, atendia seus pacientes.
Sem saber das canhotas origens do pagamento, Gilmar aceitou o acordo e vendeu a vaca ao prefeito Ferdinando, que voltou a trair a esposa com a mulher do padeiro naquele mesmo dia. Solange, a vaca, foi colocada num pedestal de mármore polido na praça central da cidade. Pedestal este que havia sido esculpido por Serafim, que era artista há anos por puro prazer de esculpir.
Em seu novo posto, a vaca passou a trabalhar como relógio de toda a cidade. Emitia seus melancólicos mugidos todos os dias, nos quais lembrava os cidadãos dos horários para acordar, trabalhar, almoçar, estudar, ir ao banheiro, mascar chicletes, levar o lixo para fora, preparar o jantar, fazer as tarefas escolares, assistir ao jornal local, trabalhar mais um pouco, dormir e acordar novamente no dia seguinte. A cidade de Fatiganha tornou-se conhecida por possuir os cidadãos mais responsáveis e pontuais de toda a América Latina, a qual engloba torno de vinte países conhecidos pelos seres humanos.
Por meses, Solange, a vaca, ditou os horários da cidade. O relógio em seu interior jamais parava de funcionar. Com o tempo, tornou-se conhecida e respeitada por toda a população das redondezas. Turistas e repórteres apareciam todos os dias, fascinados pela pontualidade intrínseca da malhada criatura.
Solange, a vaca, não apenas tornou a cidade pontual e organizada. Trouxe investidores e consumidores em excesso, os quais enriqueceram todos os comerciantes de Fatiganha. Aglomerações de humanos amontoavam-se em torno do animal, venerando-lhe como uma verdadeira rainha bovina.
Eis aqui o momento da história em que Dona Rita fez uma pausa. Foram necessários alguns segundos para que ela mastigasse mais um pouco de folhas de hortelã e contasse o trágico fim que teve a história de Solange, a vaca.
Hoje, após anos passados do ocorrido, a polícia concluiu o motivo da tragédia. Mas naquela época, ninguém fazia a mínima ideia do que causara a grande explosão. Afinal, tão fissurados pelos constantes tiques e taques do relógio, nenhum cidadão jamais preocupou-se em descobrir o que o relógio realmente era. Pois o relógio não era um relógio. Ou ao menos não um relógio comum. O que Solange, a vaca, havia engolido no pasto era, na verdade, uma bomba. Programada pacientemente para explodir quando uma multidão de seres humanos se aglomerasse a seu redor.
A potente potência da bomba não devastou apenas os quatro estômagos de Solange, a vaca, mas também toda a área de Fatiganha, dizimando toda a população. Gilmar, Maria, Olavo, Vanessa, Ferdinando Soslaio, Serafim, Doutor Renato, o padeiro, a mulher do padeiro e todos os outros pontuais e responsáveis cidadãos foram mortos num piscar de olhos bovinos.
Dona Rita terminou a história sem me fornecer maiores explicações. Indignei-me, perguntando impaciente sobre os detalhes da bomba relógio, da explosão e das consequências desastrosas. Rita enfureceu-se e me fitou de modo impaciente. “Como pode, após ouvir esta história, continuar a me fazer as perguntas erradas?” disse enraivecida. Não entendi a princípio o que ela queria dizer. Naquele dia, fui embora de sua casa com a cabeça perdida em pensamentos obscuros.
Foram necessários três anos, sete meses, oito dias, doze horas e um texto para que eu finalmente entendesse quais foram as razões que levaram à tragédia de Fatiganha. Entendo enfim que os Fatiganhenses são a prova viva (agora morta) da estupidez humana. Deram tanta atenção a uma vaca, e se esqueceram de seus próprios detalhes. A relevância de suas vidas não estava no fato da bomba-relógio ou da repercussão de Solange. Mas sim nos fatos de que Gilmar era fumante, Maria ouvia músicas francesas, Olavo era noivo de Vanessa, Vanessa era filha do vizinho, Ferdinando traía a esposa com a mulher do padeiro, Renato era canhoto, Serafim era artista por paixão, e que a América Latina engloba vinte países conhecidos por humanos. Tão vidrados em seguir os mugidos melancólicos da vaca, os Fatiganhenses não levaram em conta o detalhe mais crucial: Vacas são extremamente traiçoeiras, e nenhuma delas poderia levar a cidade a um caminho que não fosse a tragédia.
Sorrio então ao me lembrar de Dona Rita, mas não apenas de Rita em si. Lembro-me agora de Dona Rita, que mastigava folhas de hortelã. Pois humanos não são um. Humanos são sempre “um que”. Mesmo que um que venere uma vaca.
Meus dedos param de digitar e me assusto de repente. Ouço então um sonoro e aconchegante “Tic-tac” dentro de mim. Não sei de onde veio, nem o que significa. Mas sei que meu fim é o mesmo que o de Solange (a sogra, não a vaca, que faleceu há três meses). Talvez, leitor, quando terminar este texto, minha bomba-relógio já tenha explodido. Peço então que ouça seus próprios tiques e taques e seja “um que” dê orgulho. Afinal, cedo ou tarde, a bomba-relógio dentro de seu estômago também irá explodir, quer você seja Solange, ou um mero Fatiganhense.

A Fatigante História da Vaca Relógio

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