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Archive for julho 2013

        Conta-se que há muitos anos atrás (ou talvez à frente) existiu um reino mágico onde mortais e paçocas viviam em perfeita harmonia. Numa terra onde flores desabrochavam em açúcar e nuvens se desfaziam em saborosos melaços, tais simpáticas guloseimas de amendoim transmitiam seus conhecimentos aos humanos, os ensinando a viver de forma doce e entusiástica. Crianças e mini paçocas cantavam cantigas de roda e corriam sob raios ensolarados todos os dias, acreditando que a vida era um misto incontável de açúcar e felicidade.
Nem mesmo a “idealidade” de Platão esboçaria uma sociedade tão perfeita.
            Mas foi então que o Rei Amargus XV contra tal se rebelou. Acreditou que as paçocas desviavam a atenção dos humanos de tarefas produtivas, levando-os a um caminho dominado pela criatividade nada lucrativa.
Num temível acesso de fúria, o rei decretou uma nova lei. Paçocas haviam se tornado ilegais. A mera existência de tais guloseimas amendoadas tornou-se expressamente proibida. Os soldados do monarca devastaram suas terras, expulsando não apenas as paçocas, mas qualquer mero vestígio da herege arte açucarada.
Amargus ordenou que a única expressão artística legalmente permitida fossem representações de sua própria face em bustos de pedra. Estátuas em sua homenagem foram esculpidas por todos os cantos, ao passo em que muros foram erguidos nos limites do reino para impedir que qualquer paçoca rebelde ousasse tentar sorrateiramente ultrapassar a fronteira.
Nem mesmo a “insensibilidade” de Maquiavel suportaria tal governo como forma de política.
            Professores foram encomendados via Sedex, aplicados em cursos nos quais ensinariam os súditos a direcionar todas as suas atividades diárias em direção a fins lucrativos. A preocupação com a produtividade de seu próprio tempo tornou-se parte do cotidiano de plebeus e palhaços. E por décadas, nenhuma outra paçoca foi encontrada.
Anos se passaram, até que um grupo de seis jovens gnomos resolveu explorar os limites do reino. Guiados por rumores trazidos pelos ventos, que sussurravam lendas antigas sobre seres adocicados que um dia haviam habitado aquelas terras.
Nem mesmo a “aventuracidade” de Tolkien entenderia o anseio em descobrir o além do feudo.
            Foi numa noite de três luas que os sonhadores indivíduos encontraram um segredo que há tempos ansiava por ser revelado. Uma trilha, sinuosa e discreta, que se arrastava para além das fronteiras. Os gnomos se espantaram ao notar que a trilha era feita de nada menos do que paçocas. Sim... singelos pedaços cilíndricos de doce amontoados linearmente, que levavam a algum destino inimaginável.
Nem mesmo a “misteriosidade” de Conan Doyle entenderia a atratividade do mistério a ser revelado.
            Aguçados, os gnomos seguiram a trilha, em rápidos passos, antes que a Guarda Real os impedisse de instigar o desconhecido.
Nem mesmo a “fertilidade” de C.S. Lewis poderia imaginar a felicidade de tais seres ao alcançar seu destino.
            Uma pacata vila encantada, onde as linhagens de paçocas sobreviventes refugiavam-se em perfeita harmonia. Viviam em segredo, num esforço incansável de preservar a doçura que tanto lhes fora reprimida. Fascinados, os gnomos se uniram a suas sinfonias, divertindo-se por dias e noites, nos quais declamavam açúcar e comiam poesia.
            Não tardou, contudo, que os plebeus do reino notassem o sumiço dos seis pequenos seres. Aguçados pela curiosidade, pouco a pouco os cidadãos partiram em busca do paradeiro dos gnomos. À medida que encontravam a trilha de paçocas e alcançavam a pacata vila, encantavam-se de tal maneira que não voltavam jamais. A população do reino aos poucos transbordava em direção ao povoado.
            Nem mesmo a “raivosidade” de George Martin seria capaz de compreender o sentimento que dominou Amargus no momento em que notou que seus súditos cada vez mais o abandonavam.
            Ao descobrir sobre o refúgio açucarado, o poderoso monarca ordenou que seu exército marchasse em direção a vila e exterminasse definitivamente todas as paçocas. Contudo, suas palavras ecoaram pelo salão deserto. Colocou seus óculos para que pudesse enxergar melhor e constatou a dura verdade.
Não havia mais exército. Não havia mais soldados. Todos haviam fugido. Cercado por suas estátuas e bustos de mármore, mergulhado em sua miopia, o monarca nem percebera como lentamente terminara em repleta solidão. Seu reino agora nada mais era do que terras inabitadas, enquanto a população da vila das paçocas crescia estrondosamente.
            O reino tornou-se nada, e o nada tornou-se reino.
            Foi em seu auge momentâneo que, num lampejo amendoado, a terra das paçocas desapareceu. O reino se escondeu por trás de nuvens de algodão doce e nunca mais foi encontrado por ninguém.
            Desamparado, Amargus vagou por anos em repleta solidão. Mesmo quando, por acidente, encontrou a trilha secreta, não pôde enxergá-la. Sua mente era tão desprovida de açúcar que, ao olhar para as cilíndricas guloseimas, tudo que enxergava eram pequeninos tocos de madeira.
Sem nada a se apegar que não sua mente sem inventividade, o monarca vagou por terras longínquas, onde encontrou novos súditos e deu início a uma nova civilização rumo ao desenvolvimento (dessa vez, sem paçocas para lhe perturbar). Uma civilização sem criatividade da qual, contudo, fazemos parte.
            Dizem por aí que a trilha das paçocas ainda existe, mas apenas pode ser encontrada por indivíduos de mente adocicada. Num mundo onde açúcar não mais se declama, e poesia não mais se come, cada vez mais o reino das paçocas se distancia.
            Mas rumores sussurram que, vez ou outra, jovens de mentes diferenciadas desaparecem sem explicação. E quando voltam (se é que voltam) relatam histórias sobre um reino onde tudo é doce, e onde a felicidade se colhe em árvores de amendoim.
Nem mesmo a “insanidade” de Lewis Carrol poderia negar que tais rumores parecem utópicos e ilógicos por demais.
            Mas creio que ainda existem gnomos cansados de admirar os bustos de pedra de seus reis, que buscam por um mundo novo, repleto de magia. Seres pequeninos que entendem que o mundo onde vivem não pode permanecer em amargurada ignorância.
Afinal...
Nem mesmo a “adocidade” de uma paçoca arriscaria viver num mundo onde a mente é tão diabética.

O Reino das Paçocas Ilegais

Triângulos Metamórficos
Tabloides feitos de pó.
Do pó viestes, mas não retornarás.
Fecharam as portas que levam para trás.

Triângulos Metamórficos
Sangue se espalha pelo chão.
O linóleo reflete o exausto detetive
Que com arestas fugitivas agora convive.

Triângulos Metamórficos
Assassinaram a hipotenusa.
Centauros que voam, dragões que galopam
Nos não tão crespos cachos de Medusa.

Quadrados me questionam
Por que triângulos num poema?
Não fui eu, não foi Platão,
Nem mesmo a lógica do sistema.
Foram triângulos metamórficos e um círculo sonhador.

Losango Não Encontrado

A princípio, nada mais do que saborosos frutos de angiospermas orgulhosas. A fundo, representações em miniatura da vermelhidão de nosso universo. Ao passado, incluída na lista de mais fáceis palavras que crianças aprendem a escrever. Ao futuro, na lista de mais intimidantes refeições que idosos com dentes postiços temem saborear. Ao presente, apenas uma simples maçã.
            Há muito a se dizer sobre um indivíduo pelo modo como ele a abocanha. Carentes de atenção exibem um crocante som chamativo. Tímidos repartem o fruto em partes antes de ingeri-lo. Mentes pequenas o devoram de uma só vez. Sonhadores dão-lhe apenas uma simples mordida, e a estampam no logo de sua empresa de eletrônicos. O mísero crocante som causado pela mordida nos revela anseios e desejos dignos de qualquer clímax subentendido.
            Mas o segredo mais bem guardado por tais frutas é o de que são elas que regem nossas vidas. Mesmo os mais ignorantes seres humanos seguem seus passos sob a Teoria das Três Maçãs. E eis que a explico a leigos e juristas...
            A primeira delas seria a “Maçã Envenenada”. Sim, a mesma que enviou a pálida princesa de lábios rúbeos a um sono profundo nas histórias encantadas. É a maçã que representa nossa infância. Um fruto que representa não o envenenamento em si, mas sim a facilidade com que os problemas da vida podem ser superados. A noção de que basta algo mágico, como um beijo de amor verdadeiro, para cessarmos qualquer efeito maligno. A ideia espontânea na qual crianças podem quebrar qualquer maldição. É com olhos brilhosos que caminhamos em nossos primeiros anos com a noção de que tudo é belo, e que dificuldades podem facilmente ser superadas (mesmo que com a ajuda de sete fartos anões).
            A segunda etapa em nossa teoria responde à “Maçã do Edén”. O momento crucial em que cansamos de viver na ilusória utopia e ansiamos por enxergar o mundo de nossa própria maneira. O fruto sedutor que nos atrai da mesma maneira que atraiu a ametódica Eva, nos trazendo a cobiça irrefreável de experimentar o “Novo”. Na pérfida adolescência em que nos cansamos de ser ordenados por forças exteriores a nós e mordemos a maçã da independência, sendo guiados única e exclusivamente pelo desejo. Deixamos de lado o mundo que foi criado para nós, na intenção de criar o nosso próprio a nossa maneira.
            E assim partimos à maturidade, na qual a “Maçã de Newton” finalmente nos aguarda. O fruto crucial que despenca em nossos crânios, do mesmo modo que se chocou há tempos na cabeça do pulcro cientista, causando um severo distúrbio no qual o indivíduo passa a acreditar que o mundo é regido por leis científicas e que a magia não passava de uma ilusão da infância. Antes, o mundo era movido por feitiços. Agora, por física. A ciência tampa nossos olhos e desaprendemos a sonhar.
            Vermelha e sedutora, a maçã nos faz nascer, sonhar e morrer, iludidos por não perceber que a semente não se encontra no fruto, mas em nosso próprio interior, esperando apenas que algum estímulo a faça germinar.

            Vivemos pelas maçãs. Crescemos pelas maçãs. Somos maçãs... Somos maçãs? Sim. E é por isso que prefiro lasanha.



A Verdade Sobre as Maçãs

                Certa vez um homem sábio me disse que a vida é como uma colmeia sob os galhos de uma macieira em pleno verão. Nunca compreendi tal comparação, mas ela não se faz necessária nesta história. Escrevo aqui na intenção de compartilhar minha extrema afeição por uma das personagens de Joanne Rowling. A intrínseca senhorita Bones.
            Em meio a um universo repleto de diversos personagens, a escolha de tal garota parece nada mais do que inapropriada e desprovida de sentido. Contudo, tenho guardados numa pasta de cor amarela alguns arquivos que revelam minhas razões para idolatrar esta humilde criatura.
            É fato quase inquestionável que a jovem Susana trouxe aos fãs da saga a primeira impressão do que é ser selecionado para uma das casas de Hogwarts. Mesmo que a desagradável Ana Abott tenha sido a primeira aluna a ser chamada pela professora McGonagall, todos sabem que, numa sequência de fatos, o segundo é quem carrega o árduo fardo de não apenas enfrentar a tarefa, mas também de se igualar ao primeiro. E Susana triunfalmente ingressa na Lufa-Lufa com ligeira ansiedade na página dos livros, e um belo sorriso na tela dos filmes.
            Não percebem? A real importância de tal fato? É sabido que Lufa-lufas são a classe social subalterna da saga, considerados desnecessários e muitas vezes mencionados em piadas maldosas que envolvem excrementos de acromântulas. Mas a corajosa senhorita Bones bravamente estampa tal título, abraçando a Lufa-Lufa como seu lar. Tal grupo de rejeitados alunos tem sua importância estampada logo de cara nos pequeninos tímpanos ou globos oculares de qualquer jovem criança que conheça a saga pela primeira vez. O pomposo chapéu seletor cita a casa dos texugos antes que todas as outras.  É através da jovem de cabelos ruivos que os amarelos de Hogwarts são fixados na mente do jovem Potterhead. As palavras de Rowling dizem que “Susana saiu depressa e foi se sentar ao lado de Ana”, mas deixam nas entrelinhas que aquele era um dos momentos mais simbólicos de sua vida. A mensagem da garota é clara e direta ao público: “Vocês podem nos ignorar, mas estamos aqui. E temos orgulho disso.”
            Talvez seja esta uma das maiores lições contidas em toda a saga. Ela não foi A Garota que Sobreviveu. Não foi a aluna mais brilhante da classe. Não se destacou nos campos de quadribol. Susana não alcançou a glória eterna. Mas em seus breves segundos de fama, apresentou com orgulho a casa a qual pertencia, registrando-se para sempre na mente dos fãs de Joanne.
            Um centauro dinamarquês, ao ler os parágrafos acima, há de achá-los mal contados e sem sentido. Não apenas pelo fato de não falar fluentemente minha língua, mas também pelo fato de não compreender um dos mais inquestionáveis dogmas que rege a ficção. A pomposa ideia de que não existem protagonistas. Tal conceito é uma formosa ilusão criada pelos autores, que sentem a necessidade de se apegar a um de seus personagens mais do que aos outros. Mas independente de seus feitos, a importância atribuída a cada um deles é exatamente a mesma.
Mesmo que grande parte da vida de Susana não esteja inscrita nas palavras de Rowling, a nobre garota sabe que exerceu seu papel com eficiência. Compreende enfim que possui sua função neste mundo, e que não há diferença entre derrotar o Lorde das Trevas, ou derrotar os obstáculos de uma vida cotidiana. Ambos querem te destruir. A diferença está apenas na atenção que isso atrai a sua história. Assim como não há diferença entre cativar uma pessoa ou cativar milhões. Elogios alheios nunca serão tão importantes como elogios vindos de si próprio.
         Ao caminhar pela estrada empoeirada que leva a meu destino, carrego na mala um globo de vidro embalado com plástico bolha. Nele, guardo a memória de Susana, que me incentiva a seguir em frente todos os dias, me lembrando sempre de que minhas origens e as circunstâncias não definem quem realmente sou. Basta que eu me lembre que não importa o que os outros pensem, ou mesmo qual ídolo venerem. Na história contada em minha mente, cabe a este jovem complexo fazer de mim mesmo meu próprio protagonista.

A Fabulosa Vida de Susana Bones

         E nas entranhas da academia, vivia um professor castor. Com seus simpáticos incisivos sorridentes, transbordava simpatia aos seus alunos, ensinando métodos efusivos de como se constrói um dique para demarcar represas de conhecimento. Os maravilhados alunos assistiam com alegria os ditames do sábio castor, que lhes indicava um caminho no qual conceitos e valores se unem num esforço mútuo de alcançar a verdade.
O velho roedor por dias levou os estudantes a acreditar que a verdade estaria nos limites da represa, e que de um bem construído dique nada escaparia. Num local onde a maioria dos educadores eram lobos sedentos de sangue, o carisma sem igual do castor se destacava em meio aos docentes. Os ingênuos jovens o elegeram como seu líder, fantasiados por sua ideologia.
            Mas verdades mal contadas rapidamente se apodrecem. O castor era pomposo em seus discursos, mas fétido em suas ações. As ideias demagógicas cederam à primeira forte tempestade, fazendo o dique se romper. O conhecimento represado escorreu-se porta afora, e os alunos assistiram espantados a farsa revelada. Os métodos eram falsos, assim como o próprio professor, que não sabia construir dique nenhum. Policiais o algemaram e jornais noticiaram de forma sensacionalista a dura verdade: O professor castor era, na verdade, um esquilo.

            

O Curioso Caso do Professor Castor

          “Era uma vez” talvez não seja a melhor maneira de iniciar essa história. Mas não há como voltar atrás, pois foi com tais que dei início ao parágrafo. Outono foi um jovem nascido numa manhã de verão. Sentenciado desde seu batismo a aprender que, assim como as folhas, tudo cai constantemente ao longo da vida.
Ainda jovem, foi forçado pelos pais a estudar todas as possíveis ciências da natureza. Como físicos renomados, ambos trabalhavam dia e noite na intenção de elaborar a Nova Lei da Gravidade, uma tese que propunha que a força gravitacional seria bem mais eficiente do que afirmara Newton. Assim, por toda a vida, seus genitores o estimularam a abraçar a gravidade como a uma irmã, a qual um dia lhes renderia um formoso prêmio Nobel.
            Os pais de Outono não o ensinaram a andar, mas sim a cair. Era importante para eles provar como a gravidade afetava os bebês. Não o incentivaram a praticar esportes como alpinismo ou asa-delta, mas sim atividades como escavação de túneis subterrâneos, para que estivesse sempre o mais próximo possível da fonte gravitacional. Não permitiam que ele emagrecesse, mas sempre o incentivavam a acumular massa corporal, para que seu peso o mantivesse fixo ao chão.
            E assim... o jovem Outono levava sua vida, sem grandes expectativas ou ilusões, pois diziam rumores que tais letais fantasias poderiam fazer um ser humano flutuar. E se Outono alguma vez ousasse desafiar a física, seus pais jamais o perdoariam.
            Mas sabem bem como a vida funciona. Nos contentamos com iogurte desnatado, até que um anjo nos apresente o sorvete de baunilha. Foi num dia chuvoso de primavera, que entre as confusas trilhas da tabela periódica, ao brincar inocentemente no laboratório da família, conheceu o discreto Hélio. De tão tímido, se incolorava em todo seu inodor. Talvez fosse o 4 em sua massa atômica, ou talvez o modo singelo como os colegas o chamavam de He. A questão é que bastaram segundos para que Outono se afeiçoasse e o tomasse como amigo.
            Dizem que quando se encontra alguém especial, este nos deixa nas nuvens. Curiosamente, Hélio realmente exercia tal efeito. Durante tardes e noites subsequentes, divertiu o jovem Outono com acrobacias e truques, nas quais enchia bexigas coloridas e as erguia magicamente ao infinito, como se nada no mundo pudesse detê-las. O intrigava a maneira como Hélio causava efeitos em seu corpo, deixando-o nervoso de tal maneira que a voz despontava fina e ruidosa de suas cordas vocais.
            Foi então que a amizade num sonho resultou. O intrigante Hélio convenceu seu parceiro de que juntos nada os deteria. Cobiçavam a ideia de fugir durante a madrugada, com Outono amarrado a centenas de balões que ergueriam seu peso em direção ao céu. Hélio os levaria até o astro mais longínquo, onde juntos poderiam desfrutar de seus dias e realizar seus sonhos mais inimagináveis. Nunca mais haveria que ouvir os pais recitando-lhe fórmulas e leis matemáticas em preto e branco. Seu mundo seria repleto de cores, as quais ilustrariam sua vida da maneira como bem quisesse. O jovem seria livre em fim.
            Ansiosamente, guardou todos os seus sonhos na bagagem. Mal sabia que tais o arruinariam, ainda que nem eu mesmo acredite que tenha agido erroneamente.
            Foi às três e sete da manhã que os amigos tentaram partir. Uma fuga rápida da janela mais alta do laboratório de seus pais. Hélio triunfalmente erguia dúzias de bexigas coloridas, as quais erguiam o alegre Outono cada vez mais para o alto.
            Mas o garoto já não era mais criança. Repletos de desesperança, os pais urraram seu nome ao acordar e fitar o ponto que indicava seu filho em direção a luz do luar. Rogaram-lhe a maldição da maturidade, para que a fantasia o expulsasse em direção ao mundo real. Foi no quebrar destas ilusões que as leis da ciência tomaram conta de si. A inércia, o empuxo e a densidade se uniram num uníssono sorriso maquiavélico, ao contemplar as ações da poderosa gravidade.
            A tão invejosa irmã, agarrou-se a Outono com toda sua sagacidade, buscando enfim provar que os pais estavam certos e que Newton nunca imaginara a real magnitude de tal depressiva força. Hélio tentou resistir. Pediu ao amigo que acreditasse no impossível e que não desistisse de lutar. Mas já era tarde.
            Os sonhos na bagagem de Outono eram pesados demais para que pudesse aguentar. No momento em que a gravidade os envolveu, ambos despencaram juntos em direção ao chão pedregoso. O estalar de seus ossos foi superado apenas pelo forte quebrar de todos os seus devaneios.
             Senhor Pai e Senhora Mãe haviam vencido enfim. Após anos, haviam finalmente provado sua tese. A Nova Lei da Gravidade agora se estampa em livros de física por todo o universo. A glória eterna lhes foi concedida, e cientistas os aclamam mundialmente. Newton sorri em seu túmulo, orgulhoso. No canto da sala de estar, um formoso prêmio Nobel os enche de orgulho. Lustroso, dourado... encharcado pelo sangue de Outono que pinga vagarosamente todos os dias manchando o carpete.

Hélio e Outono - Uma férvida história sobre física e sonhos

Tua mãe diz que seus olhos são belos por terem sido herdados de sua avó. Sua avó afirma que a beleza deles é herdada de um tio distante. Seu irmão acredita que seus olhos se embelezam de acordo com as vestes que usa. Sua irmã já pensa que os dela são mais belos que os seus. Seu namorado afirma que a magia deles é revelada quando seus sentimentos se afloram. Seu ex já acredita que é no desabrochar que eles ficam mais atraentes. Seu oculista lhe diz que a cor deles se destaca por trás das lentes. Geneticistas afirmam que tudo não passa de um gene recessivo. Os artistas acreditam que seus olhos refletem a beleza de sua alma. Os filósofos se perguntam se por trás deles não se esconde uma dialética ainda maior. Palhaços me dizem que suas pupilas se dilatam quando ri constantemente. Mixólogos me convencem de que tal olhar não passa de uma tática de sedução. Minha mãe me disse que seus olhos combinam com os meus. Meu cachorro apenas os observa, porque não aprendeu a falar. Já eu, desconsidero todas as afirmações de tolos que não te conhecem realmente. A magia não está em seus olhos. Mas sim no modo como você os ergue quando nos encontramos. Não creio que seja intencional, mas quase nada na vida é. E não é tal verdade que nos guia? A verdade de que não se trata dos retratos da pigmentação da alma, mas sim dos percursos que os cílios incrivelmente descrevem em busca de seu destino.

Quando ergue teus olhos

     Talvez seja a repentina mudança da direção dos ventos vindos de lugar nenhum, ou talvez seja apenas uma ideia repentina que floresceu em minha mente como um cravo cultivado da forma mais dócil possível. A questão é que surgiu-me o pensamento obliquo de qual seria a real natureza de meu amigo Chubble. Acredito que seja uma morsa. Não é uma ideia de toda ilógica, mas sim o resultado de consequentes considerações que fiz sobre seus atos.
     Primeiramente, é preciso que você, caro ouvinte, saiba do que se trata tal espécime. Para início de conversa, que fique bem claro: ninguém nunca viu uma morsa. Caso um indivíduo afirme já ter visto, trata-se de um salafrário impostor, pois morsas não são animais que se afirme ter visto se não tiver visto realmente.
     Uma morsa não é uma espécie de ave de rapina, ou muito menos um termo pejorativo que possa ser usado para ofender alguém (embora diversas vezes seja usado com tal intuito por biólogos do signo de sagitário). A morsa trata-se de um formoso mamífero, que não habita desertos escaldantes nem casas de repouso religiosas. E é por essas e outras características que acredito que Chubble seja uma morsa.
     Morsas são notavelmente incapazes de desenvolver habilidades como dança ou separação silábica de proparoxítonas. Igualmente, meu caro amigo Chubble encontra dificuldades em realizá-las devido a sua extrema aversão a movimentos rítmicos e professores de português.
     Morsas costumam não falar mal de seus amigos pelas costas. E Chubble é do tipo de pessoa que escreve os defeitos alheios em letras grandes numa lousa visível diante do indivíduo.
     Morsas não vivem em torno de duzentos anos. E Chubble afirma que também não viverá até tal idade, devido a seu psicótico trauma por números iniciados pelo algarismo 2.
     Morsas não pensam apenas em dinheiro. E Chubble é a segunda espécie mais desinteressada por bens materiais que já encontrei (freiras de cabelos ruivos ocupam a primeira posição).
     Morsas não pensam nas consequências de seus atos. Vivem por instinto. E Chubble é considerado por muitos como o pai da frase “Siga o que seu coração diz”.
     Morsas também não são adeptas a se exibir constantemente por suas qualidades. Do mesmo modo, Chubble acredita que grandes talentos não necessitam de serem jogados para o alto para serem descobertos.
     Morsas não julgam um bom livro pela capa, ou um indivíduo pela aparência. Assim como Chubble sempre aguarda que certa intimidade se estabeleça, antes de dar início ao julgamento.
     Após a reunião de tantas evidências, concluí que não havia como me enganar. As semelhanças entre Chubble e as morsas eram muitas para que eu as ignorasse.
       Contudo, um breve impasse surgiu diante de mim, deixando-me duvidoso, por ser a única gritante diferença entre Chubble e tais formosos mamíferos: Chubble é um exímio admirador de queijo gorgonzola. E alguém por acaso já viu uma morsa que comesse queijo gorgonzola? Mas é claro que não! Afinal... ninguém nunca viu uma morsa.

Acredito que Chubble seja uma morsa

Sete facas possuía,
Sete ações executou.
Dotada de extasia,
Glória não hesitou.

Com a primeira, matou seu passado.
Dotado de perturbações.
A enfermeira, o ex-namorado,
Lançados aos tubarões.

Com a segunda, matou seus pais,
Culpados por sua indiferença.
Valores prontos se esvaíram,
Libertando enfim sua crença.

Com a terceira, matou jornalistas,
Independente da ética ou ocasião.
Não aguentou que tais moralistas
Limitassem sua opinião.

A quarta e a quinta se uniram,
Como se fossem uma só.
Em dois golpes, matou seu futuro,
E o prazer de tornar-se avó.

Não foi surpresa que a última fosse usada em suicídio.
O único erro de Glória foi matar-se antes do fim.
Da sexta faca, logicamente, ela havia se esquecido.
A sexta ação não concluída é o que resta para mim.

As Sete Facas de Glória

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