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Há três décadas e meia que moro em frente à grande casa de tijolos amarelos, e há trinta e cinco anos que observá-la em rotina é meu fazer mais prazeroso em dias de tédio.
É curioso observar seres humanos. Suas idas e voltas, suas rotas e vindas. Seus delírios, paixões e devaneios. O modo como eles vivem, mas deixam de observar. Cabendo a nós, móveis, imóveis e mobílias assistir a suas histórias e apreciar suas insanidades. Sim... são uma espécime devidamente peculiar. Foi o que soube no dia em que os primeiros moradores do grande casarão trancaram a filha adolescente no quarto do segundo andar.
Como todo bom pai se esquece de que um dia foi jovem, o já não mais jovem Senhor Fagundes trancara Sofia em seus aposentos, proibindo-a permanentemente de manter contato com o garoto mais velho que a paquerava no fim da rua.
Mas é fascinante observar como os jovens sempre vencem barreiras pelo amor.
Em sua sagaz perspicácia, Sofia passou a utilizar a caixa de correio como instrumento de troca de mensagens. Deixava um bilhete todas as noites preso numa fresta, o qual o apaixonado Lucas coletava durante a madrugada, e respondia com outro recado em resposta que ela coletava pela manhã.
Pude ler nos lábios de Sofia a mensagem deixada pelo garoto no dia em que ele lhe escreveu dizendo que sentia sua falta, e que odiava o fato de ela estar trancada lá em cima. Não pude evitar de me emocionar ao vê-la sussurrar e escrever a resposta, guardando o bilhete na fresta da caixa de correspondências:
“Ainda te olho todos os dias daqui de cima, com o mesmo amor que sempre tive por você.”
Não me contive de ansiedade, e passei toda a madrugada de olhos atentos, aguardando o momento em que o jovem surgiria e encontraria o recado. Naquela noite, entretanto, Lucas não apareceu. Sofia viu-se em espanto ao notar que não houvera resposta do garoto quando acordou no dia seguinte. Deixou seu recado guardado no interior da fresta, acreditando que talvez mais em breve ele viesse e encontrasse o bilhete.
Mas é fascinante observar como paixões vêm e vão qual o vento matutino.
Nunca soube o que houve com Lucas, mas ele nunca mais voltou. Seu desaparecimento acarretou em choros e soluços vindos da garota do andar de cima, e o bilhete permaneceu guardado na fresta e sem resposta.
Mas é fascinante observar como a maturidade limpa mágoas e feridas.
Sofia passou no vestibular e foi cursar medicina em Belo Horizonte. Os pais passaram a achar o casarão um tanto espaçoso, e venderam o imóvel para um colecionador de bugigangas. Guilhermo era um homem esguio, que instigou minha curiosidade desde a primeira vez que o vi entrar pela porta da frente, carregando caixas e caixas repletas de suas coleções. Algo nele o fazia bizarramente misterioso. Talvez fosse o cavanhaque sempre deixado por fazer, ou talvez a quantidade surpreendente de discos de vinil que organizava nas prateleiras, todos capazes de serem vistos pela vidraça das janelas.
E assim, assisti curioso por dias a rotina do nobre colecionador, que desempacotava diariamente coleções de quadros, estatuetas, vasos e itens dos mais variados tipos, os quais preenchiam prateleiras e estantes pelos cômodos da casa. O casarão mobiliado tornou-se brilhantemente ornamentado pelos milhares de artefatos.
Mas é fascinante observar como o material muitas vezes peca por não preencher o espírito.
Enfurnado em suas coleções, Guilhermo se sentia solitário. Sozinho e desamparado. Entrou em depressão em uma quinzena de meses. Depressão que resultou em suicídio, vindo do cano de um dos revólveres que possuía em sua coleção de armas, na forma de bala que invadira sua boca, irrompera seu crânio, e fizera litros de sangue encharcarem o chão de carpete.
O corpo foi levado, o caso foi abafado, e a casa posta à venda junto a todos os itens das coleções. Por anos, entretanto, a casa vazia permaneceu. Entediado, eu observava diariamente suas portas de entrada duplas, aguardando que um novo morador viesse a me entreter.
Porém não foram moradores que ocuparam minha visão nos próximos meses, mas sim o casal de jovens de nomes Célio e Renata. Não sei bem o que queriam. Uma aventura arriscada, ou simplesmente um local reservado para acasalamento. Em recente maioridade, ambos moravam com os pais e não dispunham de local algum para a devida privacidade do casal.
Mas é fascinante observar como o desejo leva os ardentes a cometer as maiores loucuras.
Instigados pela placa “Vende-se”, e sabidos dos rumores mal falados que alegavam o local sombrio como cenário de suicídio, o jovem casal arrombou a porta e invadiu os aposentos do casarão. Fizeram do local silencioso seu secreto e temporário ninho de apego. Repetiam o mal feito quase que diariamente, voltando todas as noites e invadindo o domicílio abandonado, utilizando os quartos, banheiros, a cozinha e a sala, todos repletos de coleções artísticas e ornamentais, para fazer aquilo que chamavam de amor.
Mas é fascinante observar como o mundo destrói a ingenuidade.
A maioridade de Célio veio com o obrigatório alistamento, e o pobre jovem foi forçado a adentrar o exército, deixando Renata desolada em espera. O casal não voltou a invadir o casarão amarelo, e minhas espiadas em suas noites de amor deram-se por encerradas assim. Mas não antes de deixar a casa pela última vez, a desvirtuada Renata levou consigo um dos discos organizados na estante dos vinis. O volume furtado de Engenheiros a permitiria ouvir incontáveis vezes a “Infinita Highway”, a fazendo lembrar do amado por todo o tempo em que estivesse longe em serviço militar.
Acredito que passei mais de anos sem ver qualquer pessoa novamente na tal casa. Não sei ao certo contar o tempo como vocês. Mas pude ver que bons períodos se passavam pelo alterar das cores das folhas que fartavam a copa volumosa da árvore de tronco retorcido a alguns metros de mim.
A casa praticamente lançada ao abandono foi furtada mais de três vezes, em crimes consecutivos executados por quadrilhas. Logo, nenhum artefato das coleções do antigo proprietário permaneceu em seu interior. Completamente desnuda em ornamentos, e ainda assombrada pela história de suicídio, a residência teve um enorme declínio em seu preço de venda. A queda dos valores foi tão alta, que um interessado e paupérrimo pai solteiro juntou suas poucas economias e conseguiu adquirir o imóvel.
Marcelo e sua filha Virgínia foram a nova família a qual assisti. Um pai amoroso e atencioso que, mesmo sem possuir muitos recursos, dava à filha toda a atenção e tempo dos quais dispunha. Ao lado do desejo de ver a pequenina Virgínia crescer, carregava consigo o sonho de se tornar um escritor. Suas horas vagas eram quase que completamente investidas na tentativa de escrever seus romances e contos. O tempo tornava-se pouco, e foi necessário que contratasse uma babá para cuidar de Virgínia. Contratou a jovem Denise, que morava ao fim da rua, e tentava reunir economias para pagar a faculdade.
Mas é fascinante observar como mesmo os sonhos mais sinuosos às vezes necessitam de estímulo.
A escrita de Marcelo por anos permaneceu empacada. Por mais que fosse criativo, necessitava de algum insight inspirador que lhe trouxesse alguma ideia original. Foi numa tarde de veraneio que uma mulher bateu a porta. Me esforcei para reconhecê-la enquanto Marcelo a atendia, até perceber que, por mais que sua aparência fosse bem mais velha do que eu me lembrava, era ninguém menos do que Renata.
A já não mais jovem mulher decidira retornar ao casarão que há anos não invadia, na intenção de devolver o disco de vinil que furtara há tempos. Agora que estava casada com Célio, com quem fora mãe de dois filhos, não precisava mais de músicas na vitrola para saciar a falta que o amado lhe fizera.
Do meu canto esverdeado no gramado, pude enxergar na expressão distante de Marcelo a maravilhosa ideia que surgiu em sua mente quando Renata lhe entregou o disco. Pude ler em seus olhos o modo como começou a pensar que, assim como a história daquele casal, muitas outras haviam passado pela mesmíssima residência. Decifrei no sorriso do aspirante à escritor que ele finalmente percebera que uma casa é repleta de memórias, e que tal concepção era uma ideia excelente para um livro.
Após a ida de Renata, enxerguei pela janela o afoito Marcelo sentar-se em frente ao computador e escrever por horas, relatando em suas páginas um romance no qual de maneira criativa inventava histórias diversas que haviam ocorrido naquela casa.
Foram necessários meses de contatos e esperas, mas uma editora logo se interessou pela obra. O romance foi publicado, e em pouquíssimos anos tornou-se um sucesso em nível nacional.
Mas é fascinante observar como a fama sobe aos olhos mais rápido que a paixão.
Focado em sua nova carreira de escritor profissional, Marcelo deixou a filha Virgínia sobre os cuidados da babá, e mudou-se para uma segunda casa em São Paulo, onde podia ter contato mais direto com editoras para cuidar de suas futuras publicações.
Ainda que sentisse a falta do pai, Virgínia era sustentada por uma farta mesada que provinha do mesmo rotineiramente, enquanto a babá Denise ocupava o papel de pai e mãe, e se afeiçoava à garota cada vez mais.
Mas é fascinante observar como ingênuas crianças crescem e tornam-se jovens insensatos.
Após envolver-se numa relação promíscua, Virgínia engravidou aos dezesseis anos. Rebelando-se numa crise existencial por diversos motivos sem cabimento, abandonou o filho recém-nascido aos cuidados de Denise, e fugiu com o namorado para uma cidadezinha distante.
Denise, ainda recebendo de Marcelo o dinheiro mensal para os cuidados da casa, deixou de lado quaisquer outras perspectivas de emprego e entregou-se inteiramente ao bebê. Deu a ele o nome
de Danilo, e amou-o como a um filho. Passou a morar no casarão amarelo, como se este fosse seu, ainda que sustentada pelo dinheiro do patrão que nunca deixava de chegar.
Foi fascinante para mim enxergar como a não mais babá deu a casa um estilo próprio. Repintando as paredes, trocando os azulejos, e organizando toda a decoração para uma atmosfera mais colorida e harmônica. Incomodava-a, contudo, algumas manchas avermelhadas que jamais saíam do carpete. Manchas estas que ela não sabia de onde vinham, mas que eu me lembrava bem de quando haviam sido respingadas do crânio estourado de Guilhermo.
Denise foi então em busca de uma loja de artefatos de limpeza, à procura de um alvejante que pudesse as tais manchas eliminar. Foi atendida por um moço de charmoso cavanhaque chamado Victor, que se dispôs a atendê-la pessoalmente, indo até sua casa e testando o produto no carpete. O alvejante, contudo, fora apenas uma desculpa.
Em sua ida até a residência, após terminado o serviço, Victor acabara sendo convidado para um jantar com Denise e o pequeno Danilo. Um jantar no qual o atendente se dera tão bem com o jovem garoto, que acabara chamando a atenção da mulher. Emocionei-me verdadeiramente ao enxergar pela janela a cena magnífica entre os três. Eram apenas um homem, uma mulher e um garoto, sem laços de sangue algum. Entretanto, pareciam verdadeiramente agir como uma família.
Mas é fascinante observar como é mesmo por ações, e não por genética, que uma família se forma enfim.

Victor e Denise, após alguns anos, se casaram numa simples cerimônia e adotaram Danilo como filho oficialmente registrado.  Por anos me deleitei com o romance de ambos, que habitavam o casarão como se a eles pertencesse. O dinheiro que ainda vinha aos montes do escritor cada vez mais famoso e abastado permitia que a nova família ali vivesse com fartura.
Na posição que ocupava do jardim, me divertia ao ver o modo como se deitavam no meu gramado em frente à casa, e observavam as estrelas. Juntos, nomeavam as constelações com apelidos bobos, e murmuravam sobre a beleza dos tais pontos brilhantes lá de cima.
Era incrível para mim também ver o pequeno Danilo crescer e se tornar um homem. Victor e Denise, já mais velhos, o haviam educado muitíssimo bem. Incentivaram-no a levar a sério a educação acadêmica, o que o levou a cursar a faculdade de Direito e tornar-se um reconhecido e pomposo advogado anos mais tarde.
  Com o filho formado, casado e já morando em casa própria, Denise e Victor aproveitaram os anos de casamento vivendo juntos na casa de tijolos amarelos. Amavam-se incondicionalmente, e juntos repetiam sempre o feito de observar as estrelas que tanto os entretinham. Diziam que o amor era para sempre, e que após décadas de casamento, um dia repousariam juntos no brilho mágico das constelações.
Mas é fascinante observar como o destino às vezes intervém com curvas trágicas.
Assisti com pesar ao sofrimento do casal quando Victor descobriu o tumor, e começou o tratamento. Foi quando enxerguei nos humanos a fabulosa arte de lutar pela vida. E a estupenda loucura de lutar pelo amor.
Ainda assim... Victor se foi. Faleceu numa tarde nublada, deixando a pobre Denise num desolamento inconsolável. Observei-a chorando por dias... semanas... meses... tornando-se triste, deprimida e por fim louca.
Assisti assustado a sua reação quando ela decidiu pôr fim a todas as memórias do casarão. Quando rogou em voz alta que não deixaria que o marido se tornasse apenas mais uma história... mais uma memória nos tijolos amarelos que acabaria indo parar nas páginas de um dos livros de Marcelo.
Decidida a fazer com que o marido fosse o último e eterno habitante daquela casa, desfez-se do antigo estoque de uísque, despejando o líquido inflamável pelo carpete e ateando fogo em toda a construção.
Assisti às lágrimas brotarem de seus olhos enquanto o casarão era consumido pelas chamas.
Mas é fascinante observar como os humanos são propensos à loucura.
Apesar de que... eu, em minha singela textura de porcelana, com este gorro pontudo e este sorriso que daqui nunca sai, sonho ainda em um dia saber como é isso.
Sonho em saber como é possuir essa loucura chamada amor. Essa loucura que permite à Denise que, por motivo nenhum, abra a caixa de correio e vasculhe seu interior. Lá dentro, ela encontra uma fresta suja e empoeirada. E dentro da fresta, percebe que há preso um bilhete. Abre. Lê. E, por fim, chora. Chora incontrolavelmente, pois as palavras ali escritas mexem com algo dentro dela.
Eu, em minha ignorância de gnomo de jardim, sei que o bilhete em suas mãos foi deixado ali há muito tempo. Mas ela, em sua magia de ser humano, acredita fielmente que é um recado de Victor.

“Ainda te olho todos os dias daqui de cima, com o mesmo amor que sempre tive por você.”

Relatos de um Gnomo de Jardim

Pode ser que seja fácil, mas não pode ser difícil, que você, caro leitor, seja capaz de imaginar a seguinte situação: Eis que está num almoço de família e sua avó reclama constantemente das dores na coluna causadas pela velhice. É engraçado observar como seu pai parece não dar ouvidos, apenas balançando a cabeça e erguendo as sobrancelhas, como se não suportasse mais ouvir a mesma balela de sempre enquanto ingere a garfada de macarronada. Curiosamente, tal semblante é o mesmo que o seu quando ele lhe enche o saco dizendo que “quando crescer, verá o que são responsabilidades”.
A questão é essa. Estão todos sempre reclamando de tudo. E se é verdade que os mais velhos sabem mais do que os mais jovens,deverá ser então um fato que a tendência da vida é sempre inevitavelmente piorar.
Mas será mesmo? A vida é mesmo assim tão cheia de desastres e catástrofes depressivas? Estamos todos condenados a infelicidade? Essas e outras perguntas, você não verá respondidas sexta no Globo Repórter. Afinal, não são coisas sobre as quais seres humanos se dão ao trabalho de dizer.
 E foi por isso que deixei de discutir com humanos e dei ouvidos a Chubble, discutindo tal tema enquanto jogávamos eu e ele nossa partida matinal de xadrez no despertar de terça feira. Como de costume, reclamávamos da vida. O trabalho está cansativo, a faculdade está puxada, e garotas tolas da internet insistem em dizer que E. L. James é uma boa escritora. Mas por mais que reclamemos com afoitamento, tal feito não é pra ser feito em voz alta.
Afinal, todos fingem já estar cientes de que a vida é uma droga sem fim. Motivo pelo qual temos todos a resposta na ponta da língua quando nos indagam “Como está você?”. Se a opção de se limitar ao simples “Estou bem, e você?” não for a escolhida, brota do diálogo uma veemente competição, na qual o oponente se esforça ao máximo para provar que a vida dele tem sido a mais difícil. Diga que está trabalhando muito, e dirão que estão trabalhando mais. Diga que os filhos dão trabalho, e dirão que o trabalho lhes deu filhos. E o consenso dos maiores se comunica... de que a vida inteira é uma completa desgraça.
Mas desprovido de graça era mesmo o maldito Senhor Laerte. O vizinho que ladeava o terreno da casa de férias de Chubble, durante os meses em que se despediu de mim por um breve hiatus e foi visitar a cidade de Gramado. Senhor Laerte era um homem robusto que plantava grama todos os dias. Plantava-as e depois cortava, colocando montes das mesmas em saquinhos plásticos e pondo-os sobre balanças de cozinhas, na intenção de medir quantos gramas pesavam as gramas de Gramado. Após ter todas as embalagens devidamente lacradas, vendia-as para toda a vizinhança. Era prova de estilo maior no bairro comprar os saquinhos aromáticos de mato do Senhor Laerte, os quais eram pendurados nas portas e janelas, para que a casa desfrutasse sempre de um agradável cheiro de grama recém-cortada.
O único vizinho que jamais comprava do estoque de gramas era Chubble, pois tinha uma grave alergia a capim, assim como a creme de alho pastoso.
Na tentativa de ampliar as vendas, Sr. Laerte advertiu que Chubble muito se arrependeria se não viesse a comprar nenhum dos pacotes aromáticos. Dizia ele que semanalmente o caminhão de porcos que por ali passava deixava um cheiro ofensivo de excrementos pelo caminho. Tal odor intoxicava as narinas e lacrimejava os olhos, e só podia ser disfarçado pelo aroma das gramas penduradas pela casa. Sendo assim, comprar alguns gramas da grama de Gramado era não apenas uma tendência estilosa, mas uma necessidade extrema para uma vida pródiga.
Entretanto, por mais que o robusto vizinho bigodudo tanto lhe avisasse, meu amigo-talvez-uma-morsa nunca lhe deu ouvidos. Permaneceu unindo suas economias, moeda por moeda. Até chegar o dia em que o caminhão de porcos passou.
O odor das fezes dos barulhentos animais alastrou as casas vizinhas numa temível nuvem invasora. Donas de casa penduraram dezenas dos saquinhos de grama em suas janelas, enquanto crianças, cachorros e corretores de imóveis canhotos corriam para suas casas, na intenção de se proteger do temível fedor.
Chubble, por sua vez, simplesmente não se importou. Manteve-se inerte no sofá de sua casa, frente a TV, assistindo as reprises de Jeannie é um Gênio.  É claro que suas narinas sentiram de imediato o cheiro dos excrementos suínos no momento em que o caminhão passou. O cheiro era, de fato, repugnante. Mas nada que fosse impossível de aguentar. A história de Sr. Laerte era de fato um exagero.
Assim, Chubble gastou a quantia economizada na compra de queijo gorgonzola, pois sabia fielmente que a grama do vizinho podia ser mais verde, mas seu queijo, ainda que com cheiro de porco, era bem mais saboroso.
E foi de tal história que surgiu-me a revolta. Afinal, por que é que estão todos... Todos cultivando sacolas de grama?! Tudo com o único intuito de mostrar para os vizinhos o quanto sua sacola é mais difícil de carregar.
Vejam só... no topo da linha da vida, temos as reclamações dos idosos. Sempre aptos a declarar para os mais jovens que a terceira idade é depressivamente dolorida, e que quando alcançarem tal idade terão vidas monótonas, dependentes de bingos, Viagra e crochê.
Como que para dar o troco, adultos voltam-se para os mais jovens e estendem um catálogo de reclamações acerca de suas responsabilidades. Contam sempre sobre o fardo de criar uma família, lidar com um emprego e pagar o 10% em churrascarias. E, claro, nunca se esquecem de dizer... “Vocês vão ver quando crescerem. Tudo será muito pior.”
Mas não são poupados os jovens, que ainda que aturem os adultos, reclamam tanto quanto os mesmos. Se não da falta de dinheiro, da falta de álcool nas festas, e da falta de moedas para os Xerox da faculdade. Apontam os dedos nos focinhos de seus irmãos adolescentes e prenunciam que, quando estes crescerem, a vida será muito difícil.
E até mesmo os tais aborrescentes, na flor da idade, voltam-se para as crianças e anunciam que a vida é uma droga. Que ao crescerem, não serão ouvidos por ninguém, taxados de rebeldes e reclamões, e forçados a recorrer ao uso de identidades falsas.
Restam então as crianças, que não tem a quem, nem o que reclamar. Pois para elas, a vida é perfeita. Pelo menos, ainda é. Até o momento em que os mais velhos, que acreditam ser mais sábios, prenunciem que um dia tudo há de piorar. E ali jazem elas... na base da cadeia alimentar. Onde a grama ainda é tão verde e divinamente fresca. Por que insistimos em estragá-la com toda nossa porcalheira?
Porque vivemos com o desejo de atacar a grama alheia, assim como alguém mais velho um dia depredou a nossa. E neste ciclo sem fim, nos tornamos realmente uma desgraça.
A vida não é ruim. A vida não é difícil. A vida, assim como o cheiro dos porcos, não é algo impossível de lidar.
Idosos possuem tempo para explorar os prazeres da serenidade. Adultos possuem a independência de tomar próprias decisões. Jovens possuem a experiência de poder cometer erros. E quanto aos adolescentes, um turbilhão de ideias em suas mentes, para engatar projetos que mudarão o mundo futuro.
Pois eis então a verdade. Os níveis da vida não vão subindo de dificuldade. São os seres humanos que vão aumentando de chatice.
E quando vemos, somos nós que estamos lá, perguntando aos nossos sobrinhos sobre as namoradinhas.
E ninguém pensa que seria mais fácil simplesmente aceitar o fato de que a vida é sim um mar de rosas. De que tudo, exatamente tudo, está as mil maravilhas. E que os defeitos não vem de fora, mas de dentro. Dessa estúpida mania de enxergar sempre o pior.
Pois é claro que, assim como somos humanos, somos como grama... exatamente como a grama vendida por Senhor Laerte. Programados desde o princípio para enfrentar o depressivo e imaginário cheiro de merda da vida.




A nefasta sociedade das gramas verdes

É bem provável que digam os anjos que a chuva tinha cheiro de chocolate suíço no dia em que Soraia nasceu. Embora Chubble insista amargamente que não há mesmo maior revelia num derivado de cacau europeu do que numa boa tapioca brasileira. De qualquer forma... o cheiro era devanestador. Neologismo que aqui significa “aquilo que devanesta”.
O fato é que Soraia nasceu.
E como todo aquele que nasce, a garota cresceu.
E como toda garota que cresce, a jovem tornou-se mulher.
Sim. Mulher, com seios, TPM e sexto sentido. A pele morena, a cada ano mais escura, em contraste com os dourados cabelos, a cada dia mais tingidos. Trazia-lhe admiradores, assim como lhe traziam filhos.
Durante sua trajetória, engravidou cinco vezes de cinco distintos fornecedores de esperma. Dos filhos, três garotos e duas mulheres. Uma definitiva prole ideal para servir de combustível... este tal que acendia a centelha que ela precisava para alastrar sua maternidade.
Ser mãe. Esta era a vocação de Soraia.
Se havia algo que nenhum alguém jamais poderia negar era o incondicional afeto e preocupação que a mulher tinha por seus filhos.  Não apenas pelos cinco filhos legítimos que trouxera do ventre. Mas também qualquer reles e palpável necessitado que batesse a sua porta, janela ou panturrilha em busca de ajuda. Soraia considerava qualquer amigo ou conhecido como filho, e vivia seus dias cotidianamente prestando ajuda ao primeiro grito de socorro.
Foi tal vocação maternal que a levou a criar a distinta Escola Especializada Em Escoteirismo. Um belíssimo local que captava indivíduos infantis das favelas, ruas, praças e condomínios fechados, e os robotizava para uma vida fartamente recheada de valores e boas ações, instaurando um amor incondicional pelo lema “O próximo antes de mim”.
Os garotos e garotas escoteiros foram muitos. Passaram-se anos, e novas turmas surgiram, à medida que as seguintes subiam de nível, até alcançar a graduação. Os “Escoteiros de Soraia” tornaram-se conhecidos, por toda a cidade... por todo o estado... por todo o país. Salvavam crianças em árvores, e gatos perdidos em shoppings e supermercados. Faziam homenagens públicas a espécies silvestres da fauna, e capturavam políticos para mantê-los em cativeiro.
A franquia das Escolas Especializadas Em Escoteirismo se multiplicou em cinco distintas sedes por todo o território nacional. Cada um dos colégios se tornou responsabilidade de um dos filhos legítimos de Soraia.
O primeiro foi dado à Catarina, que aceitou-o de bom grado, sempre certa de que merecia as melhores regalias por ser a mais velha dos irmãos.
O segundo foi para Pedro, que, sempre cismado em discordar de tudo o que a irmã fazia, logo tomou uma das vagas para si, para provar que podia fazer um melhor serviço.
O terceiro irmão, Jeremias, logo viu na oportunidade uma forma de aumentar sua popularidade, descolando também alguns fundos para uma futura aquisição de um Xbox, e assumiu a direção de uma das franquias.
A quarta escola, ficou sob os comandos de Esther, a penúltima irmã, que de tão estudiosa e aplicada em suas pesquisas místicas, chegava a ser perturbada e lunática.
A última e, sim, menos importante... foi designada para os domínios de Evandro. O caçula da estirpe, com quem Soraia raramente tinha contato.
E assim se estabeleceram os negócios de família.
Mas nem só de pão viverá o homem. E nem só de amores vivia Soraia. Os anos na política se transfiguraram para um governo opressor, que abusava do poder e destoava daqueles que acreditavam em justiça. Condenada por propagar ideologias de alta periculosidade, Soraia foi mandada para o exílio. Expulsa para uma ilha longínqua, condenada a nunca mais voltar.
Contudo, os recados que deixara na geladeira para os cinco filhos afirmavam com toda a certeza que um dia ela voltaria, e que cada um deles deveria preservar o seu legado até que o momento chegasse.
Dessa forma, cada um passou a guiar sua Escola Especializada Em Escoteirismo à suas próprias maneiras.
Catarina, a mais velha, prometeu que, de todas as formas, manteria viva a imagem da mãe. Com uma extrema afeição por fotos, mandou emoldurar centenas de quadros com os semblantes afetuosos de Soraia, e espalhou-os por todos os cantos. As imagens serviam de lembrança. Um carinhoso cutucão na memória que permitia aos escoteiros mirins sentirem a matriarca sempre por perto.
Contudo, buscava uma maneira de ir em busca da mãe. Sem tê-la por perto, buscou ajuda dos seus seguidores. Os demais Escoteiros já graduados que haviam vivido em seu propósito, e que sabiam de cor todos os ensinamentos, desde o Manual de Cozinha à Base de Queijo, ao Guia de Sobrevivência Na Sessão de Nicholas Sparks. Cada um daqueles grandes nomes conhecidos trazia para a escola de Catarina ensinamentos inigualáveis, fazendo com que todos se sentissem mais próximos da mesma distante Soraia.
Pedro, por sua vez, recusou-se a pedir ajuda de tais profissionais. Acreditava que a sabedoria de Soraia era tão magnificamente perfeita, que ninguém a ela podia se equiparar. Contudo, era sabido que sua mãe havia sido, além de matriarca, e atriz substituta na versão municipal de O Mágico de Oz, uma excelente escritora. Deixara para trás textos e escrituras recheados de seus princípios e ensinamentos.
Assim, para que não houvesse erros ou mirabolações, a escola de Pedro usou os livros. Os alunos eram didaticamente educados todos os dias, estimulados a ler textos e mais textos de Soraia que lhes ensinavam belamente. As turmas foram muitas, e os estudantes cada vez mais capacitados tornaram-se exímios conhecedores dos livros de escoteirismo. Com o tempo, a Escola Especializada Em Escoteirismo de Pedro abriu turmas para o ensino básico, assim como classes para pós-graduação. E a educação tornou-se entre eles primazia.
Pedro, entretanto, jamais deixou de buscar pela mãe. Sabia enfim que não havia melhor meio de aproximá-lo de Soraia do que ler suas belíssimas palavras. E vivenciando seus textos cotidianamente, ao lado de um pacote de Doritos diário que alimentava seu vício incessante por salgadinhos, o segundo filho seguiu a vida mantendo a esperança no retorno da mulher.
Jeremias, por sua vez, teve medo de deixar que cada estudante interpretasse os livros de Soraia por conta própria. A receita de Bolo de Papo de Anjo contida no Livro dos Segredos Culinários, por exemplo, era tão complexa que, se mal interpretada, poderia resultar no nascimento de um vírus capaz de causar um verdadeiro apocalipse. Decidiu então que caberia a ele interpretar as palavras da mãe e ensinar aos alunos o que cada sílaba significava. Decidido a manter viva a imagem de Soraia, gastou anos contando aos Escoteiros sobre a pessoa maravilhosa que esta fora e ainda era.
Não pôde, é claro, deixar de tentar buscá-la de alguma forma. Sabia o quanto a mãe era adepta de popularidade. Assim, decidiu divulgar seu nome de todas as formas, disposto a fazer que o mundo todo soubesse quem ela era. Uniu grupos de estudantes e saiu pelas ruas, batendo de porta em porta, contando a todos sobre Soraia e os valores maravilhosos que ela propagava. As pessoas se encantavam com tudo o que Jeremias espalhava, e logo o nome da matriarca dos Escoteiros tornou-se conhecido e estampado em outdoors, programas de auditório, e adesivos de para-choque.
Já a jovem e ametodicamente ousada Esther, decidiu ir além do proposto pelos irmãos mais velhos, e buscou um meio de haver um real contato com Soraia. Era sabido que os sinais de telefone e conversas por Skype não funcionavam no território exilado, mas foi com muita pesquisa e testes duvidosos em rádios abandonadas e depósitos radioativos que a mulher conseguiu uma maneira. Desenvolveu um método de captação de mensagens através de antenas parabólicas, no qual sussurros eram jogados em sua mente através de ondas magnéticas, permitindo-a contatar indivíduos da Ilha do Exílio. As antenas jamais se conectaram diretamente a sua mãe, mas contatavam vez ou outra alguns exilados que viviam com ela e lhe transmitiam suas mensagens.
Sem nunca deixar as pesquisas com as antenas comunicativas de lado, Esther passou a divulgar as mensagens dos amigos de sua mãe, ensinando aos alunos valores sobra a bondade e a caridade. O sistema da Escola, organizado em níveis, apenas permitia que o aluno prosseguisse para uma nova etapa se ele realmente demonstrasse bons feitos na trajetória.
Pois então...
Que uma relação entre quatro irmãos que desde a infância não fora pacífica, logo tornou-se alimentada por um espírito competitivo de quem seria o melhor Escoteiro-Mór. Cada um passou os anos seguintes na tentativa de provar que, quando a mãe enfim retornasse, dentre todas as Escolas, da sua ela mais se orgulharia.
Distante então de Catarina, Pedro, Jeremias e Esther, o caçula Evandro cuidava também da Escola da qual ficara encarregado.
Ao contrário dos irmãos, jamais buscou por Soraia. Nunca havia chegado a criar nenhum vínculo afetivo pela mãe sempre atarefada.
Assim, por mais que cuidasse do legado que ela lhe deixara, jamais se importou em pensar na figura da matriarca, e, principalmente, em momento algum acreditara que ela algum dia retornaria do exílio.
Por mais que não pensasse nela... pensava em seus alunos. Esboçava um apreço e afeto imenso por cada um daqueles pequenos jovens em sua Escola, e voltou os olhos para a receita que os tais tanto almejavam: bandejas de educação com sérias pitadas de carinho.
Ajudou não apenas na formação de seus Escoteiros, mas lutou por direitos dos idosos em protestos na prefeitura, realizou campanhas de agasalhos e brinquedos novos para famílias da região, contratou engenheiros que esboçassem um devido projeto de saneamento para os bairros necessitados, construiu uma rede gratuita de oficinas de arte e esporte para crianças e adolescentes, enquanto distribuía semanalmente dez mil caixas de pizza de franbacon para todos da comunidade.
Viveu sua vida em prol de sorrisos... Sorrisos das faces de seus alunos, de seus amigos, de conhecidos, e de desconhecidos também.
Por mais que houvesse se esquecido da mãe, jamais se esquecera dos irmãos. Enquanto os demais perpetuavam em brigas e discussões tolas numa competição de quem dirigia a melhor Escola, Evandro se dispôs a ajudar cada um da melhor maneira que pôde. Ajudou Catarina a contatar professores de outras escolas para lhe prestar auxílio. Contribuiu com as pesquisas de Pedro lhe fornecendo livros de sua biblioteca privada. Fez empréstimos financeiros para que Jeremias pudesse investir na divulgação de seu trabalho. E selecionou alguns de seus melhores Escoteiros para ajudar na construção das antenas parabólicas de Esther.
E foi neste cair das pétalas que anos se passaram.
As Escolas dos quatro irmãos mais velhos seguiam os passos de Soraia, enquanto a escola de Evandro seguia os passos que se mostravam necessários.
Eis então que uma grave epidemia adoentou os corruptos no poder. Logo, ditadores morreram em massa, e o país voltou ao período democrático. Num dia de inverno, tipicamente sem neve, onde cada exilado teve a chance irrecusável (ou não) de voltar para casa, Soraia retornou.
A multidão foi à loucura. Pessoas, animais e palhaços foram às ruas para festejar a volta daquela que fundara as tão respeitadas e essenciais Escolas Especializadas Em Escoteirismo.
A felicidade de ninguém, contudo, podia ser maior do que aquela que alastrava os filhos da mulher.
Catarina, Pedro, Jeremias e Esther vestiram seus melhores pares de roupa, com sapatos combinando e sorrisos polidamente carismáticos. Não viam a hora de mostrar para Soraia tudo aquilo que haviam construído em sua ausência. Os quadros e bustos em sua homenagem, as pesquisas fundadas em seus livros, a publicidade em torno de seu nome, e os projetos de caridade feitos conforme ela bem ensinara.
Soraia nunca se sentiu tão amada. Os quatro filhos mais velhos lhe haviam provado jamais terem se esquecido de seu nome.
Mas foi no encontro do último filho que instaurou-se a surpresa real. Envergonhado, Evandro arrependia-se de todas as formas de ter duvidado da própria mãe. De ter perdido as esperanças. Desconsolado, pedia em murmúrios que ela o perdoasse.
Mas não foi o que fez Soraia. A matriarca enxergou na Escola de Evandro tudo aquilo que sempre pregara. Em cada ato e detalhe singelamente realizado, recendia a mensagem de seu lema principal: “O próximo antes de mim”.
- Seus irmãos passaram a vida cuidando com amor dos Escoteiros deles, na intenção de me agradar. – ponderou a mãe - Tu passaste o mesmo período cuidando dos teus, na simples intenção de que seus Escoteiros se sentissem amados, e aprendessem a amar também.
Foram estas palavras que lhe deixara antes de dar as costas e partir em férias prolongadas para a Escandinávia. Mas para Evandro, que sempre vivera em prol de sorrisos, o sorriso dela era tudo. Tudo para deixar claro o que se passava na mente sinuosa da negra mulher de cabelos tingidos.
Soraia jamais quisera ser amada. Quisera ela, na verdade, que o mundo fosse amado por seus filhos.
Das homenagens de Catarina, da esperança de Pedro, da dedicação de Jeremias e do carinho de Esther... obtivera amor.
Mas, naquele dia, apenas da pura e despretensiosa entrega árdua de Evandro obtivera orgulho.
Pois lhe mostrando que amava o mundo, lhe mostrava que amava o lema, e lhe mostrando que amava o lema, Evandro acabava mostrando que, mais do que todos outros, amava Soraia acima de todas as coisas.

Do Sorriso de Soraia

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