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“Vocês acabaram de ser bombardeados com endorfina! O hormônio do prazer!” diz a professora de spinning após liberar os alunos triturados e empapados de suor que terão câimbras na bunda após sofrer com o banco duro das bicicletas aeróbicas. O exercício pode ser uma tortura, mas realmente, nos dá ânimo e disposição pra um resto de dia bem sorrido. Como se queimar calorias sobre aqueles demoníacos aparelhos de metal nos fizesse sentir que somos mais úteis do que amebas. A preguiça atrapalha. A vontade de fugir pra comer uma coxinha também. Mas render-se a academia e sofrer aquela dose matinal de exercícios não dá apenas um prazer pós-treino, dá um diferencial na qualidade de vida.
Correto?
                Mas este não é um texto didático para alunos de fundamental falando sobre a importância da atividade física. Porque disso todo mundo já sabe. Esse texto é pra falar de algo que muita gente já sabe, mas não se arrisca a falar.
                Os instrutores da academia.
                Possuem uma simples função: instruir.
                Mas é claro, que dentro de todo grupo de seres humanos, há sempre alguns diferenciados... no mal sentido. E é destes especificamente que estou falando aqui. Dos instrutores que vão além de instruir.
                Chubble sabe bem que nunca fui do tipo dotado de resistência física, qualidade gerada por nossas constantes bacias de Doritos durante episódios de séries de TV. Começar a academia há alguns meses não foi uma tarefa fácil. Mas todo pequeno sedentário deve começar do início. Com calma e persistência.
               

Mas mal começam os treinos, e lá vem um dos instrutores e ri na minha cara, porque eu não consigo fazer um dos exercícios de peso até o fim. Dá licença, senhor, se eu fosse profissional, eu seria instrutor, e não aluno.
                Pois então que lá veio a outra instrutora durante um dos exercícios de bíceps que, pra variar, eu não sei bem o nome.
                “- Vamos! Você não está levantando direito! E pode aumentar esse peso!
                - Eu sei. Tenho dificuldade com esse exercício. Não tenho força nos bíceps. É a primeira vez que...
                - Vamos! Levanta!
                - Não consigo ir mais do que isso! Vou abaixar um pouco o peso...
                - Abaixar? Vai abaixar pra 15?
                - Com o tempo, eu vou aumentando, mas por enquanto meus braços não pegam 20 quilos...
                - Vai colocar 15 quilos?! Isso eu pego numa mão só.
                - Sério? Ainda bem que quem tá fazendo esse aqui sou eu e não você.”
                Dá licença, moça? Em que momento no contrato da academia a sua opinião veio inclusa nos benefícios? Sei que seu serviço é estimular o pessoal a se esforçar cada vez mais. Mas se eu tô sentido a porra do meu braço latejando, eu não vou aumentar a bosta do peso ainda mais! Talvez amanhã...
                O que a tal moça e alguns outros do local não entendem é que nem todo mundo ali está procurando ficar com os músculos do braço definidos no tamanho de melões. Alguns simplesmente estão fazendo uma atividade física por questões de saúde.
                Existe gente, tipo Chubble e Eu, que decidiu encarar a vida ali no meio dos aparelhos porque sabe que a saúde pede, mas não porque decidiu se render aos tão falados “padrões de beleza”.
Estou morrendo no spinning, sofrendo na esteira, me acabando em abdominais, mas não tô a fim de ser do tipo que se gaba pela quantidade de quilos que carrega. Se fosse orgulhoso, preferiria me gabar pela quantidade de livros que eu leio.
Então, querido Instrutor que ri na minha cara, e prezada Instrutora que critica minha falta de preparo. Fodam-se. Eu continuarei pegando a quantidade de quilos que eu der conta. E aumentarei o peso um pouco de cada vez, respeitando meus próprios limites.
No final do dia, quem paga a conta da academia sou eu mesmo. E, por mais que eu saiba que vocês dois não estão lendo esse texto, eu fico feliz em desabafar com o Chubble sem ter que perder a educação em público.
Mas saiba que da próxima vez que um de vocês vier dar opinião onde não deve, minha cabeça estará formulando uma única imagem:

Dá licença... e se eu não quiser ser musculoso?

Leitores nos furtam histórias
O menino
roubava o cheiro dos livros.
Dos aromas
tirava memórias e as depositava em frascos de vidro
Em seu quarto, a coletânea
de livros que havia lido e bem escondido extraíra o perfume.
Na prateleira, cada frasco
cheirava uma história.

Damas nos furtam rosas,
mas no bar de tapas da esquina a dama furtou-lhe a atenção,
Portando o tal livro entre os dedos – e verde-água as vestes que usava.
O crescido menino a cheirava e o surpreendia tamanho perfume
Como pode um humano exalar
aquilo que só os tais livros cheiravam?
Encontros,
Risadas,
O beijo.
Casal tão íntimo, ainda tão vívida a dura questão.
No sorriso e coração aberto, mostrou-lhe a dama em verde-água
Que quando escrevia livros próprios,
Criava cheiros de inspiração.

Livros nos furtam tempo,
Deles furtamos tudo.
Cada aroma, cada odor.
De seu reles escritor.
Escritora aquela dama, lhe deu livros,
Deu-lhe amor.
- Mas todos os cheiros vêm de pessoas?
- Toda essência vem de um alguém.
Um livro é um porta-memórias,
Disso a autora sabia bem.
E juntos viveram romance,
Sentiram o drama e a ficção.

Anos mais tarde, se foi a dama,
Resta na cama o viúvo leitor
Na prateleira, um único frasco
que não possui mais cheiro de livros,
mas o cheiro da nuca da dama – que lembra manhãs bem despertadas
E quem sabe um dia, o não-mais-menino decida
derramar o frasco em algum livro
de sua própria autoria
venda
e compremos

Pois que bom leitor não há de se apaixonar
por um livro com cheiro de amor?



Furto


Cara Simélia,
Uma vez mamãe me disse que o tempo passa mais rápido à medida que envelhecemos. Assim como quando me dissera que eu não devia furar o maldito piercing, ou que comida esquentada no micro-ondas nos enchia de radiação, não dei ouvidos à ela. E vejam só agora... anos se passaram. Décadas, acredito eu. E já não sei mais se é apenas o tempo tão longo aquilo que nos distancia.
Confesso, ainda me lembro da sua obsessão com o tempo quando éramos crianças. Quando decidiu, com apenas sete anos, que seria uma brilhante cientista. Em suas ingênuas palavras, seria a primeira a construir a fantástica máquina do tempo, capaz de levá-la a qualquer desventura do passado. Os anos se passaram e a fantasia passou a se fundir com pesquisas reais e estudos intensos acerca dos mistérios da física. Todos os professores indagaram como uma adolescente poderia ter produzido um artigo tão complexo sobre a teoria do espaço-tempo ainda no ensino médio.
Naquela época, os sonhos já haviam amadurecido. As conversas bobas sobre viagens temporais haviam sido descartadas pelas próprias leituras à Stephen Hawking. Mas o desejo de desbravar a ciência ainda permanecia. Seria reconhecida no campo de pesquisas da relatividade. E, um dia, ainda revolucionaria o modo como as pessoas viam a ciência.
Mas, Simélia, por que deu ouvidos ao seu pai? Se sabia que o velho era um tolo machista que subjugara sua própria mãe durante todos os anos de casamento... por que cedera a suas vontades? Eu e você sabemos bem que jamais fora adepta do pensamento de que mulheres naquela idade deveriam arrumar parceiros com urgência. Mas, ainda assim, começou o namoro com aquele imbecil. O detestável filho do Senhor Prefeito.
Seu pai sempre foi um grande puxa-saco quando o assunto é política, não é mesmo? Então que ele lambesse as bolas do maldito filho do prefeito, e não você! O garoto nunca te respeitou, desde o primeiro encontro! Ele a privou de uma vida toda de descobertas no florescer da sua sexualidade tão resguardada. Cada toque, cada beijo, cada aperto, jamais lhe instigou ao desejo... mas a levava ao receio. Ao medo. Não apenas porque você sabia que o tal moço é um ogro. Mas porque você sabe bem o que deseja.
Pode nunca ter tido um relacionamento, mas seu coração soube na primeira vez que a viu. O filho do prefeito pode ter sido um jegue sem igual. Mas a irmã dele, Clarice... Você jamais se esqueceu da primeira vez que fitou aqueles olhos castanhos. Da forma como descobriu que a simplicidade do castanho podia guardar um brilho indescritível.
Como dói em mim saber que você se culpou todas as vezes em que fugiu com Clarice pelos parques da cidade. Que chorou sozinha e perguntou a si mesma se era certo desejar aquele beijo, aquele abraço, aquele sorriso, quando seu pai tanto repetia que você e Clarice deviam conquistar homens de qualidade. Os passeios secretos durante a madrugada, as mensagens enviadas das mais variadas e criativas maneiras, os girassóis que ela roubava para ti, e os pedaços de pizza que você roubava para ela, as músicas que ouviam juntas, o toque dela em sua mão, em seu corpo... tudo isso a faria completa. Mas você recusou-se a aceitar.
Ainda assim, passou anos ao lado de um brutamonte, aguentando todos os insuportáveis defeitos, só pra que não se afastasse da cunhada-amante.
Simélia, dói em mim ainda mais... lembrar que estive contigo quando seu pai desferiu-lhe aquele tapa. O doloroso tapa de vergonha quando você e Clarice foram descobertas. Não era apenas uma garota... era a filha do prefeito, o que fazia da vergonha um vexame ainda maior.
Eu sei que ainda chora por saber que Clarice fugiu da família e foi morar com parentes distantes, decidida a terminar a faculdade longe dali. Sei também que o motivo das lágrimas é que não teve coragem o suficiente para ir junto com ela. Que não aceitou o convite, pois achou que não era o certo a se fazer. O medo tomou conta de seus sentidos, Simélia, e você deixou que o maldito prefeito fizesse o filho colocar este anel em seu dedo. O anel que o faz chamá-lo de noivo, e brotar um sorriso no rosto de seu pai.
Mas repense, minha querida... repense se é mesmo prudente baixar a cabeça. Sabe bem como será esse casamento. Nada de conversas carinhosas, ou passeios românticos. Não que você tenha sonhado alguma dessas coisas com ele. Mas não haverá amor. Serás para ele apenas uma companhia. Um troféu social que ele exibirá nas festas na prefeitura, e uma boneca de trapos destinada a ser seu brinquedo sexual. Jamais sentirá prazer, Simélia. Jamais sentirá amor.
E o pior... é que com o tempo vai acabar se acostumando com isso. Irá entender que não há mais tempo para estudos científicos, ou trabalhos em laboratórios com pesquisas sem propósito. Seu dever é estar ao lado do teu homem. Cuidar da casa... Engravidar.
Ah, sim... terá lindos filhos, Simélia. Na verdade, apenas um, já que um único será o bastante para seu marido provar sua virilidade, já que ele nunca realmente desejou crianças. Mais especificamente, será uma filha, com os cachos iguais aos teus. Até o nascimento dela, sua mente já terá apagado toda sua independência. Completamente submissa ao seu homem, o único contato que terá com a física e química as quais tanto amava estudar será através dos produtos de limpeza com os quais limpará a casa, enquanto faz a bebê pegar no sono.
Teu marido será rígido. Precisará fazer suas vontades. Com o tempo, vai até se converter para a religião dele. A culpa não está naquela igreja é claro, mas no mau uso que as pessoas fazem dela. Lá dentro, você terá certeza de que estará no caminho certo. E aprenderá a confundir o fato de que está “conformada com a vida”, com felicidade. Até mesmo os socos que seu marido lhe dará de vez em quando serão aceitos, sem questionar. Apanhar é bom para amadurecer a mente.
Pelo mesmo motivo, baterá em sua filha. Tapas cada vez mais fortes serão corretivos para fazer dela uma menina de respeito. Sua doce Carolina. Irá, crescer, crescer... e deixar de ser tão doce quanto fora na infância. Ela não irá aceitar toda a rigidez vinda do pai, mas de você tão pouco receberá apoio.
Pois você terá medo. Já que verá refletido nos olhos de sua Carolina a mesma paixão proibida que sentiu nos teus olhos há anos. No momento em que vê-la de mãos dadas a uma garota, chamando de romance aquele pecado imperdoável.
Você jamais poderá deixar que o marido descubra sobre o namoro secreto da filha! Irá puni-la, castiga-la. Mas ela já será maior de idade. Irá cuspir em seu rosto e gritar palavras grotescas, retribuindo toda a falta de carinho com a qual você a tratou, e indo embora de sua casa para sempre. Você não saberá se ela fugiu com a namorada, ou se está perdida pela cidade. Encontrá-la será impossível. E a culpa será sua...
Seu marido ficará possesso. Você terá perdido a filha dele! Os tapas serão mais fortes, e você passará a não conseguir mais segurar as lágrimas. Não apenas porque os tapas doem, mas porque sabe que perdeu sua filha no momento em que a impediu de viver pelo amor.
Com o tempo, sua mente cansada já não mais se preocupará com o que é certo. Os antigos conhecimentos sobre química permitirão que você sabiamente coloque as toxinas no café de seu homem. A morte dele jamais a terá como suspeita. Você Simélia, será viúva. Mas ao contrário do que pensa, a ida dele não a fará feliz.
Pois só então perceberá como os anos se passaram. Quando, no velório de teu marido, assistir a chegada de sua cunhada. A fantástica Clarice continua bela após tantas décadas longe de ti. Mais bela ainda é a mulher que a acompanha, a qual ela chama de esposa, com a qual é mãe de dois filhos. Os filhos de Clarice a fazem lembrar de Carolina. Ou talvez, sejam apenas seus desejos de ter sido você a ter tido filhos com ela.
Mas, após tanto tempo, mamãe ainda está certa. Terão sido mesmo os anos de comida esquentada no micro-ondas responsáveis pelo câncer? Bom... tudo o que sei é que o tumor se espalha. E ao mesmo tempo em que me derrota, é também minha única companhia. Pois há tempos que é o único, além dos médicos, que entra em contato com meu corpo.
Estou viúva. Meu verdadeiro amor superou-me há anos para encontrar os olhos de uma outra mulher. E já compreendo que Carolina jamais irá voltar. Que motivos ela tem, afinal, pra sentir falta da mãe?
Ah, Simélia, pois eu lhe digo com todo o meu âmago... como eu queria que a garota que foi aos sete anos tivesse se esforçado um pouco mais. Já não mais ligo para o que dizem os cientistas. Hoje, queria eu que ela tivesse conseguido. Que se tornasse uma pomposa cientista, e criasse a sonhada máquina do tempo. Pois somente com essa máquina dos sonhos, cara Simélia, seria possível que eu lhe entregasse essa carta. Somente com ela seria possível que você a lesse e descobrisse que a vida não precisa ser levada conforme aquilo que lhe dizem que é o certo.
Mas não há tal máquina, Simélia. E não há mais chances para nenhuma de nós duas. Então, gostaria apenas que soubesse de uma coisa: Depois de tanto sofrimento, de tantas lágrimas... Eu ainda estarei aqui. E pode ter demorado muito tempo, mas eu finalmente consigo enxergar a beleza que há em você, garota. Você não é apenas inteligente e carismática, como dizia mamãe. É uma mulher forte e madura, capaz de resistir aos piores tormentos. Não há ninguém que lhe complete, Simélia. Pois você já é completa por si só. Você é perfeita.
Eu só queria que pudesse saber disso...
Desejo força e esperança. Você é uma guerreira, garota.
Com abraços, de sua grande admiradora,

Simélia.





Carta para Simélia

(Sobre eu ter falado que usaria as férias pra escrever e produzir, e acabar gastando uma semana inteira jogando videogame e experimentando sabores de jujuba...)

Há alguns dias me flagrei pensando, durante uma partida de dominó na qual Chubble acidentalmente engoliu uma das peças acreditando ser chocolate... quem escreveu as regras da utilidade da vida?
Provavelmente um tirano ditador que sofria de calvície desde os primeiros anos da maturidade, que num nada belo dia decidiu que seriam considerados úteis as ações que, direta ou indiretamente, enchessem os bolsos de dinheiro ou vale-trocas de postos de gasolina. Estudar = útil, trabalhar = útil, dançar zumba com seu animal de estimação = perda de tempo.
E não importa nosso estado de humor. Mesmo nos dias mais inúteis de nossa mente, somos praticamente empurrados em direção a uma pilha de afazeres que gritam “Vamos! Tempo é dinheiro! Seja alguém na vida! Produza! Você é um homem ou um saco de alcachofras?!”

Mas será mesmo? Afinal, pra que é que trabalhamos tanto? Precisamos de dinheiro pra que possamos ter condição de comprar roupas, livros, ingredientes para receitas de bolo Marta Rocha, e tudo mais aquilo que acreditamos (erroneamente ou não) nos fazer felizes. Qualquer coisa que nos faça sorrir.
Sorrir... no frigir dos ovos de codorna, não é isso que estamos sempre buscando? Sorrisos. Consideramos útil tudo aquilo que, a longo prazo, um dia nos dê dinheiro pra que possamos ter condição de sorrir, já que vivemos numa sociedade que só sorri com aquilo que se compra.
“Faz sentido”, Chubble diria, “Não há como sorrir sem pagar um bom ortodontista”. Bom... se tivesse lido com atenção um de meus antigos poemas, ele saberia que não. Sorrisos não podem ser comprados. Por mais que isso seja difícil de se entender hoje em dia.
Nunca fui uma pessoa que gosta de extremismos. Assim, da mesma forma que não aprovo alguém que se entrega inteiramente à escravidão de um emprego, não digo que acho sensato se render a uma vida de ações vazias e sem propósito. Mas o que defendo nesse pequeno desabafo seja talvez uma questão de equilíbrio.
Um equilíbrio onde saibamos apreciar as coisas inúteis da vida. Ações bobas como apostar corrida com os amigos, se submergir num livro por horas, brincar de adedonha ou até mesmo tirar aquela boa soneca. Ações que nos tragam sorrisos. Sem que precisemos ter que trabalhar anos e anos, pra só depois comprarmos bens materiais que um dia nos façam arreganhar os dentes em felicidade.
Ser inútil faz bem de vez em quando. Afinal, se inútil é aquilo que nada produz... uma reles ação que lhe brote um sorriso, já possui utilidade.
Por isso, não se acanhe. Você não precisa ser mega-produtivo todos os dias. Use agora aqueles bons minutos. Vá assistir aquele filme, assaltar aquela geladeira, ou estralar aqueles dedos dormentes. Coloque os braços pra trás e deixe que cada músculo se espreguice numa preguiça risonha.
Inutilize-se. Só por hoje. De vez em quando, faz bem. Faz sorrir. Faz-se útil.


Inutilidades da Vida

Masque hoje um chiclete

pois a vida é muito mais
que se ater a arcadas dentárias
e de um dentista limitações.
proibições
enfadonhamente otárias
que deixam-te até
com sorriso completo
e boca cuidada mais que bela.
mas cá entre nós,
a vida não é feita pra sorrir correto.
quer algo melhor que sorriso banguela?
esqueça o flúor, e a fuga tente.
sorriso não se vê
sorriso se sente.

Masque hoje um chiclete


Há três décadas e meia que moro em frente à grande casa de tijolos amarelos, e há trinta e cinco anos que observá-la em rotina é meu fazer mais prazeroso em dias de tédio.
É curioso observar seres humanos. Suas idas e voltas, suas rotas e vindas. Seus delírios, paixões e devaneios. O modo como eles vivem, mas deixam de observar. Cabendo a nós, móveis, imóveis e mobílias assistir a suas histórias e apreciar suas insanidades. Sim... são uma espécime devidamente peculiar. Foi o que soube no dia em que os primeiros moradores do grande casarão trancaram a filha adolescente no quarto do segundo andar.
Como todo bom pai se esquece de que um dia foi jovem, o já não mais jovem Senhor Fagundes trancara Sofia em seus aposentos, proibindo-a permanentemente de manter contato com o garoto mais velho que a paquerava no fim da rua.
Mas é fascinante observar como os jovens sempre vencem barreiras pelo amor.
Em sua sagaz perspicácia, Sofia passou a utilizar a caixa de correio como instrumento de troca de mensagens. Deixava um bilhete todas as noites preso numa fresta, o qual o apaixonado Lucas coletava durante a madrugada, e respondia com outro recado em resposta que ela coletava pela manhã.
Pude ler nos lábios de Sofia a mensagem deixada pelo garoto no dia em que ele lhe escreveu dizendo que sentia sua falta, e que odiava o fato de ela estar trancada lá em cima. Não pude evitar de me emocionar ao vê-la sussurrar e escrever a resposta, guardando o bilhete na fresta da caixa de correspondências:
“Ainda te olho todos os dias daqui de cima, com o mesmo amor que sempre tive por você.”
Não me contive de ansiedade, e passei toda a madrugada de olhos atentos, aguardando o momento em que o jovem surgiria e encontraria o recado. Naquela noite, entretanto, Lucas não apareceu. Sofia viu-se em espanto ao notar que não houvera resposta do garoto quando acordou no dia seguinte. Deixou seu recado guardado no interior da fresta, acreditando que talvez mais em breve ele viesse e encontrasse o bilhete.
Mas é fascinante observar como paixões vêm e vão qual o vento matutino.
Nunca soube o que houve com Lucas, mas ele nunca mais voltou. Seu desaparecimento acarretou em choros e soluços vindos da garota do andar de cima, e o bilhete permaneceu guardado na fresta e sem resposta.
Mas é fascinante observar como a maturidade limpa mágoas e feridas.
Sofia passou no vestibular e foi cursar medicina em Belo Horizonte. Os pais passaram a achar o casarão um tanto espaçoso, e venderam o imóvel para um colecionador de bugigangas. Guilhermo era um homem esguio, que instigou minha curiosidade desde a primeira vez que o vi entrar pela porta da frente, carregando caixas e caixas repletas de suas coleções. Algo nele o fazia bizarramente misterioso. Talvez fosse o cavanhaque sempre deixado por fazer, ou talvez a quantidade surpreendente de discos de vinil que organizava nas prateleiras, todos capazes de serem vistos pela vidraça das janelas.
E assim, assisti curioso por dias a rotina do nobre colecionador, que desempacotava diariamente coleções de quadros, estatuetas, vasos e itens dos mais variados tipos, os quais preenchiam prateleiras e estantes pelos cômodos da casa. O casarão mobiliado tornou-se brilhantemente ornamentado pelos milhares de artefatos.
Mas é fascinante observar como o material muitas vezes peca por não preencher o espírito.
Enfurnado em suas coleções, Guilhermo se sentia solitário. Sozinho e desamparado. Entrou em depressão em uma quinzena de meses. Depressão que resultou em suicídio, vindo do cano de um dos revólveres que possuía em sua coleção de armas, na forma de bala que invadira sua boca, irrompera seu crânio, e fizera litros de sangue encharcarem o chão de carpete.
O corpo foi levado, o caso foi abafado, e a casa posta à venda junto a todos os itens das coleções. Por anos, entretanto, a casa vazia permaneceu. Entediado, eu observava diariamente suas portas de entrada duplas, aguardando que um novo morador viesse a me entreter.
Porém não foram moradores que ocuparam minha visão nos próximos meses, mas sim o casal de jovens de nomes Célio e Renata. Não sei bem o que queriam. Uma aventura arriscada, ou simplesmente um local reservado para acasalamento. Em recente maioridade, ambos moravam com os pais e não dispunham de local algum para a devida privacidade do casal.
Mas é fascinante observar como o desejo leva os ardentes a cometer as maiores loucuras.
Instigados pela placa “Vende-se”, e sabidos dos rumores mal falados que alegavam o local sombrio como cenário de suicídio, o jovem casal arrombou a porta e invadiu os aposentos do casarão. Fizeram do local silencioso seu secreto e temporário ninho de apego. Repetiam o mal feito quase que diariamente, voltando todas as noites e invadindo o domicílio abandonado, utilizando os quartos, banheiros, a cozinha e a sala, todos repletos de coleções artísticas e ornamentais, para fazer aquilo que chamavam de amor.
Mas é fascinante observar como o mundo destrói a ingenuidade.
A maioridade de Célio veio com o obrigatório alistamento, e o pobre jovem foi forçado a adentrar o exército, deixando Renata desolada em espera. O casal não voltou a invadir o casarão amarelo, e minhas espiadas em suas noites de amor deram-se por encerradas assim. Mas não antes de deixar a casa pela última vez, a desvirtuada Renata levou consigo um dos discos organizados na estante dos vinis. O volume furtado de Engenheiros a permitiria ouvir incontáveis vezes a “Infinita Highway”, a fazendo lembrar do amado por todo o tempo em que estivesse longe em serviço militar.
Acredito que passei mais de anos sem ver qualquer pessoa novamente na tal casa. Não sei ao certo contar o tempo como vocês. Mas pude ver que bons períodos se passavam pelo alterar das cores das folhas que fartavam a copa volumosa da árvore de tronco retorcido a alguns metros de mim.
A casa praticamente lançada ao abandono foi furtada mais de três vezes, em crimes consecutivos executados por quadrilhas. Logo, nenhum artefato das coleções do antigo proprietário permaneceu em seu interior. Completamente desnuda em ornamentos, e ainda assombrada pela história de suicídio, a residência teve um enorme declínio em seu preço de venda. A queda dos valores foi tão alta, que um interessado e paupérrimo pai solteiro juntou suas poucas economias e conseguiu adquirir o imóvel.
Marcelo e sua filha Virgínia foram a nova família a qual assisti. Um pai amoroso e atencioso que, mesmo sem possuir muitos recursos, dava à filha toda a atenção e tempo dos quais dispunha. Ao lado do desejo de ver a pequenina Virgínia crescer, carregava consigo o sonho de se tornar um escritor. Suas horas vagas eram quase que completamente investidas na tentativa de escrever seus romances e contos. O tempo tornava-se pouco, e foi necessário que contratasse uma babá para cuidar de Virgínia. Contratou a jovem Denise, que morava ao fim da rua, e tentava reunir economias para pagar a faculdade.
Mas é fascinante observar como mesmo os sonhos mais sinuosos às vezes necessitam de estímulo.
A escrita de Marcelo por anos permaneceu empacada. Por mais que fosse criativo, necessitava de algum insight inspirador que lhe trouxesse alguma ideia original. Foi numa tarde de veraneio que uma mulher bateu a porta. Me esforcei para reconhecê-la enquanto Marcelo a atendia, até perceber que, por mais que sua aparência fosse bem mais velha do que eu me lembrava, era ninguém menos do que Renata.
A já não mais jovem mulher decidira retornar ao casarão que há anos não invadia, na intenção de devolver o disco de vinil que furtara há tempos. Agora que estava casada com Célio, com quem fora mãe de dois filhos, não precisava mais de músicas na vitrola para saciar a falta que o amado lhe fizera.
Do meu canto esverdeado no gramado, pude enxergar na expressão distante de Marcelo a maravilhosa ideia que surgiu em sua mente quando Renata lhe entregou o disco. Pude ler em seus olhos o modo como começou a pensar que, assim como a história daquele casal, muitas outras haviam passado pela mesmíssima residência. Decifrei no sorriso do aspirante à escritor que ele finalmente percebera que uma casa é repleta de memórias, e que tal concepção era uma ideia excelente para um livro.
Após a ida de Renata, enxerguei pela janela o afoito Marcelo sentar-se em frente ao computador e escrever por horas, relatando em suas páginas um romance no qual de maneira criativa inventava histórias diversas que haviam ocorrido naquela casa.
Foram necessários meses de contatos e esperas, mas uma editora logo se interessou pela obra. O romance foi publicado, e em pouquíssimos anos tornou-se um sucesso em nível nacional.
Mas é fascinante observar como a fama sobe aos olhos mais rápido que a paixão.
Focado em sua nova carreira de escritor profissional, Marcelo deixou a filha Virgínia sobre os cuidados da babá, e mudou-se para uma segunda casa em São Paulo, onde podia ter contato mais direto com editoras para cuidar de suas futuras publicações.
Ainda que sentisse a falta do pai, Virgínia era sustentada por uma farta mesada que provinha do mesmo rotineiramente, enquanto a babá Denise ocupava o papel de pai e mãe, e se afeiçoava à garota cada vez mais.
Mas é fascinante observar como ingênuas crianças crescem e tornam-se jovens insensatos.
Após envolver-se numa relação promíscua, Virgínia engravidou aos dezesseis anos. Rebelando-se numa crise existencial por diversos motivos sem cabimento, abandonou o filho recém-nascido aos cuidados de Denise, e fugiu com o namorado para uma cidadezinha distante.
Denise, ainda recebendo de Marcelo o dinheiro mensal para os cuidados da casa, deixou de lado quaisquer outras perspectivas de emprego e entregou-se inteiramente ao bebê. Deu a ele o nome
de Danilo, e amou-o como a um filho. Passou a morar no casarão amarelo, como se este fosse seu, ainda que sustentada pelo dinheiro do patrão que nunca deixava de chegar.
Foi fascinante para mim enxergar como a não mais babá deu a casa um estilo próprio. Repintando as paredes, trocando os azulejos, e organizando toda a decoração para uma atmosfera mais colorida e harmônica. Incomodava-a, contudo, algumas manchas avermelhadas que jamais saíam do carpete. Manchas estas que ela não sabia de onde vinham, mas que eu me lembrava bem de quando haviam sido respingadas do crânio estourado de Guilhermo.
Denise foi então em busca de uma loja de artefatos de limpeza, à procura de um alvejante que pudesse as tais manchas eliminar. Foi atendida por um moço de charmoso cavanhaque chamado Victor, que se dispôs a atendê-la pessoalmente, indo até sua casa e testando o produto no carpete. O alvejante, contudo, fora apenas uma desculpa.
Em sua ida até a residência, após terminado o serviço, Victor acabara sendo convidado para um jantar com Denise e o pequeno Danilo. Um jantar no qual o atendente se dera tão bem com o jovem garoto, que acabara chamando a atenção da mulher. Emocionei-me verdadeiramente ao enxergar pela janela a cena magnífica entre os três. Eram apenas um homem, uma mulher e um garoto, sem laços de sangue algum. Entretanto, pareciam verdadeiramente agir como uma família.
Mas é fascinante observar como é mesmo por ações, e não por genética, que uma família se forma enfim.

Victor e Denise, após alguns anos, se casaram numa simples cerimônia e adotaram Danilo como filho oficialmente registrado.  Por anos me deleitei com o romance de ambos, que habitavam o casarão como se a eles pertencesse. O dinheiro que ainda vinha aos montes do escritor cada vez mais famoso e abastado permitia que a nova família ali vivesse com fartura.
Na posição que ocupava do jardim, me divertia ao ver o modo como se deitavam no meu gramado em frente à casa, e observavam as estrelas. Juntos, nomeavam as constelações com apelidos bobos, e murmuravam sobre a beleza dos tais pontos brilhantes lá de cima.
Era incrível para mim também ver o pequeno Danilo crescer e se tornar um homem. Victor e Denise, já mais velhos, o haviam educado muitíssimo bem. Incentivaram-no a levar a sério a educação acadêmica, o que o levou a cursar a faculdade de Direito e tornar-se um reconhecido e pomposo advogado anos mais tarde.
  Com o filho formado, casado e já morando em casa própria, Denise e Victor aproveitaram os anos de casamento vivendo juntos na casa de tijolos amarelos. Amavam-se incondicionalmente, e juntos repetiam sempre o feito de observar as estrelas que tanto os entretinham. Diziam que o amor era para sempre, e que após décadas de casamento, um dia repousariam juntos no brilho mágico das constelações.
Mas é fascinante observar como o destino às vezes intervém com curvas trágicas.
Assisti com pesar ao sofrimento do casal quando Victor descobriu o tumor, e começou o tratamento. Foi quando enxerguei nos humanos a fabulosa arte de lutar pela vida. E a estupenda loucura de lutar pelo amor.
Ainda assim... Victor se foi. Faleceu numa tarde nublada, deixando a pobre Denise num desolamento inconsolável. Observei-a chorando por dias... semanas... meses... tornando-se triste, deprimida e por fim louca.
Assisti assustado a sua reação quando ela decidiu pôr fim a todas as memórias do casarão. Quando rogou em voz alta que não deixaria que o marido se tornasse apenas mais uma história... mais uma memória nos tijolos amarelos que acabaria indo parar nas páginas de um dos livros de Marcelo.
Decidida a fazer com que o marido fosse o último e eterno habitante daquela casa, desfez-se do antigo estoque de uísque, despejando o líquido inflamável pelo carpete e ateando fogo em toda a construção.
Assisti às lágrimas brotarem de seus olhos enquanto o casarão era consumido pelas chamas.
Mas é fascinante observar como os humanos são propensos à loucura.
Apesar de que... eu, em minha singela textura de porcelana, com este gorro pontudo e este sorriso que daqui nunca sai, sonho ainda em um dia saber como é isso.
Sonho em saber como é possuir essa loucura chamada amor. Essa loucura que permite à Denise que, por motivo nenhum, abra a caixa de correio e vasculhe seu interior. Lá dentro, ela encontra uma fresta suja e empoeirada. E dentro da fresta, percebe que há preso um bilhete. Abre. Lê. E, por fim, chora. Chora incontrolavelmente, pois as palavras ali escritas mexem com algo dentro dela.
Eu, em minha ignorância de gnomo de jardim, sei que o bilhete em suas mãos foi deixado ali há muito tempo. Mas ela, em sua magia de ser humano, acredita fielmente que é um recado de Victor.

“Ainda te olho todos os dias daqui de cima, com o mesmo amor que sempre tive por você.”

Relatos de um Gnomo de Jardim

Pode ser que seja fácil, mas não pode ser difícil, que você, caro leitor, seja capaz de imaginar a seguinte situação: Eis que está num almoço de família e sua avó reclama constantemente das dores na coluna causadas pela velhice. É engraçado observar como seu pai parece não dar ouvidos, apenas balançando a cabeça e erguendo as sobrancelhas, como se não suportasse mais ouvir a mesma balela de sempre enquanto ingere a garfada de macarronada. Curiosamente, tal semblante é o mesmo que o seu quando ele lhe enche o saco dizendo que “quando crescer, verá o que são responsabilidades”.
A questão é essa. Estão todos sempre reclamando de tudo. E se é verdade que os mais velhos sabem mais do que os mais jovens,deverá ser então um fato que a tendência da vida é sempre inevitavelmente piorar.
Mas será mesmo? A vida é mesmo assim tão cheia de desastres e catástrofes depressivas? Estamos todos condenados a infelicidade? Essas e outras perguntas, você não verá respondidas sexta no Globo Repórter. Afinal, não são coisas sobre as quais seres humanos se dão ao trabalho de dizer.
 E foi por isso que deixei de discutir com humanos e dei ouvidos a Chubble, discutindo tal tema enquanto jogávamos eu e ele nossa partida matinal de xadrez no despertar de terça feira. Como de costume, reclamávamos da vida. O trabalho está cansativo, a faculdade está puxada, e garotas tolas da internet insistem em dizer que E. L. James é uma boa escritora. Mas por mais que reclamemos com afoitamento, tal feito não é pra ser feito em voz alta.
Afinal, todos fingem já estar cientes de que a vida é uma droga sem fim. Motivo pelo qual temos todos a resposta na ponta da língua quando nos indagam “Como está você?”. Se a opção de se limitar ao simples “Estou bem, e você?” não for a escolhida, brota do diálogo uma veemente competição, na qual o oponente se esforça ao máximo para provar que a vida dele tem sido a mais difícil. Diga que está trabalhando muito, e dirão que estão trabalhando mais. Diga que os filhos dão trabalho, e dirão que o trabalho lhes deu filhos. E o consenso dos maiores se comunica... de que a vida inteira é uma completa desgraça.
Mas desprovido de graça era mesmo o maldito Senhor Laerte. O vizinho que ladeava o terreno da casa de férias de Chubble, durante os meses em que se despediu de mim por um breve hiatus e foi visitar a cidade de Gramado. Senhor Laerte era um homem robusto que plantava grama todos os dias. Plantava-as e depois cortava, colocando montes das mesmas em saquinhos plásticos e pondo-os sobre balanças de cozinhas, na intenção de medir quantos gramas pesavam as gramas de Gramado. Após ter todas as embalagens devidamente lacradas, vendia-as para toda a vizinhança. Era prova de estilo maior no bairro comprar os saquinhos aromáticos de mato do Senhor Laerte, os quais eram pendurados nas portas e janelas, para que a casa desfrutasse sempre de um agradável cheiro de grama recém-cortada.
O único vizinho que jamais comprava do estoque de gramas era Chubble, pois tinha uma grave alergia a capim, assim como a creme de alho pastoso.
Na tentativa de ampliar as vendas, Sr. Laerte advertiu que Chubble muito se arrependeria se não viesse a comprar nenhum dos pacotes aromáticos. Dizia ele que semanalmente o caminhão de porcos que por ali passava deixava um cheiro ofensivo de excrementos pelo caminho. Tal odor intoxicava as narinas e lacrimejava os olhos, e só podia ser disfarçado pelo aroma das gramas penduradas pela casa. Sendo assim, comprar alguns gramas da grama de Gramado era não apenas uma tendência estilosa, mas uma necessidade extrema para uma vida pródiga.
Entretanto, por mais que o robusto vizinho bigodudo tanto lhe avisasse, meu amigo-talvez-uma-morsa nunca lhe deu ouvidos. Permaneceu unindo suas economias, moeda por moeda. Até chegar o dia em que o caminhão de porcos passou.
O odor das fezes dos barulhentos animais alastrou as casas vizinhas numa temível nuvem invasora. Donas de casa penduraram dezenas dos saquinhos de grama em suas janelas, enquanto crianças, cachorros e corretores de imóveis canhotos corriam para suas casas, na intenção de se proteger do temível fedor.
Chubble, por sua vez, simplesmente não se importou. Manteve-se inerte no sofá de sua casa, frente a TV, assistindo as reprises de Jeannie é um Gênio.  É claro que suas narinas sentiram de imediato o cheiro dos excrementos suínos no momento em que o caminhão passou. O cheiro era, de fato, repugnante. Mas nada que fosse impossível de aguentar. A história de Sr. Laerte era de fato um exagero.
Assim, Chubble gastou a quantia economizada na compra de queijo gorgonzola, pois sabia fielmente que a grama do vizinho podia ser mais verde, mas seu queijo, ainda que com cheiro de porco, era bem mais saboroso.
E foi de tal história que surgiu-me a revolta. Afinal, por que é que estão todos... Todos cultivando sacolas de grama?! Tudo com o único intuito de mostrar para os vizinhos o quanto sua sacola é mais difícil de carregar.
Vejam só... no topo da linha da vida, temos as reclamações dos idosos. Sempre aptos a declarar para os mais jovens que a terceira idade é depressivamente dolorida, e que quando alcançarem tal idade terão vidas monótonas, dependentes de bingos, Viagra e crochê.
Como que para dar o troco, adultos voltam-se para os mais jovens e estendem um catálogo de reclamações acerca de suas responsabilidades. Contam sempre sobre o fardo de criar uma família, lidar com um emprego e pagar o 10% em churrascarias. E, claro, nunca se esquecem de dizer... “Vocês vão ver quando crescerem. Tudo será muito pior.”
Mas não são poupados os jovens, que ainda que aturem os adultos, reclamam tanto quanto os mesmos. Se não da falta de dinheiro, da falta de álcool nas festas, e da falta de moedas para os Xerox da faculdade. Apontam os dedos nos focinhos de seus irmãos adolescentes e prenunciam que, quando estes crescerem, a vida será muito difícil.
E até mesmo os tais aborrescentes, na flor da idade, voltam-se para as crianças e anunciam que a vida é uma droga. Que ao crescerem, não serão ouvidos por ninguém, taxados de rebeldes e reclamões, e forçados a recorrer ao uso de identidades falsas.
Restam então as crianças, que não tem a quem, nem o que reclamar. Pois para elas, a vida é perfeita. Pelo menos, ainda é. Até o momento em que os mais velhos, que acreditam ser mais sábios, prenunciem que um dia tudo há de piorar. E ali jazem elas... na base da cadeia alimentar. Onde a grama ainda é tão verde e divinamente fresca. Por que insistimos em estragá-la com toda nossa porcalheira?
Porque vivemos com o desejo de atacar a grama alheia, assim como alguém mais velho um dia depredou a nossa. E neste ciclo sem fim, nos tornamos realmente uma desgraça.
A vida não é ruim. A vida não é difícil. A vida, assim como o cheiro dos porcos, não é algo impossível de lidar.
Idosos possuem tempo para explorar os prazeres da serenidade. Adultos possuem a independência de tomar próprias decisões. Jovens possuem a experiência de poder cometer erros. E quanto aos adolescentes, um turbilhão de ideias em suas mentes, para engatar projetos que mudarão o mundo futuro.
Pois eis então a verdade. Os níveis da vida não vão subindo de dificuldade. São os seres humanos que vão aumentando de chatice.
E quando vemos, somos nós que estamos lá, perguntando aos nossos sobrinhos sobre as namoradinhas.
E ninguém pensa que seria mais fácil simplesmente aceitar o fato de que a vida é sim um mar de rosas. De que tudo, exatamente tudo, está as mil maravilhas. E que os defeitos não vem de fora, mas de dentro. Dessa estúpida mania de enxergar sempre o pior.
Pois é claro que, assim como somos humanos, somos como grama... exatamente como a grama vendida por Senhor Laerte. Programados desde o princípio para enfrentar o depressivo e imaginário cheiro de merda da vida.




A nefasta sociedade das gramas verdes

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