Há
três décadas e meia que moro em frente à grande casa de tijolos amarelos, e há
trinta e cinco anos que observá-la em rotina é meu fazer mais prazeroso em dias
de tédio.
É
curioso observar seres humanos. Suas idas e voltas, suas rotas e vindas. Seus
delírios, paixões e devaneios. O modo como eles vivem, mas deixam de observar.
Cabendo a nós, móveis, imóveis e mobílias assistir a suas histórias e apreciar
suas insanidades. Sim... são uma espécime devidamente peculiar. Foi o que soube
no dia em que os primeiros moradores do grande casarão trancaram a filha
adolescente no quarto do segundo andar.
Como
todo bom pai se esquece de que um dia foi jovem, o já não mais jovem Senhor Fagundes
trancara Sofia em seus aposentos, proibindo-a permanentemente de manter contato
com o garoto mais velho que a paquerava no fim da rua.
Mas
é fascinante observar como os jovens sempre vencem barreiras pelo amor.
Em
sua sagaz perspicácia, Sofia passou a utilizar a caixa de correio como
instrumento de troca de mensagens. Deixava um bilhete todas as noites preso
numa fresta, o qual o apaixonado Lucas coletava durante a madrugada, e
respondia com outro recado em resposta que ela coletava pela manhã.
Pude
ler nos lábios de Sofia a mensagem deixada pelo garoto no dia em que ele lhe
escreveu dizendo que sentia sua falta, e que odiava o fato de ela estar
trancada lá em cima. Não pude evitar de me emocionar ao vê-la sussurrar e escrever
a resposta, guardando o bilhete na fresta da caixa de correspondências:
“Ainda
te olho todos os dias daqui de cima, com o mesmo amor que sempre tive por
você.”
Não
me contive de ansiedade, e passei toda a madrugada de olhos atentos, aguardando
o momento em que o jovem surgiria e encontraria o recado. Naquela noite,
entretanto, Lucas não apareceu. Sofia viu-se em espanto ao notar que não
houvera resposta do garoto quando acordou no dia seguinte. Deixou seu recado
guardado no interior da fresta, acreditando que talvez mais em breve ele viesse
e encontrasse o bilhete.
Mas
é fascinante observar como paixões vêm e vão qual o vento matutino.
Nunca
soube o que houve com Lucas, mas ele nunca mais voltou. Seu desaparecimento
acarretou em choros e soluços vindos da garota do andar de cima, e o bilhete
permaneceu guardado na fresta e sem resposta.
Mas
é fascinante observar como a maturidade limpa mágoas e feridas.
Sofia
passou no vestibular e foi cursar medicina em Belo Horizonte. Os pais passaram
a achar o casarão um tanto espaçoso, e venderam o imóvel para um colecionador
de bugigangas. Guilhermo era um homem esguio, que instigou minha curiosidade
desde a primeira vez que o vi entrar pela porta da frente, carregando caixas e
caixas repletas de suas coleções. Algo nele o fazia bizarramente misterioso. Talvez
fosse o cavanhaque sempre deixado por fazer, ou talvez a quantidade
surpreendente de discos de vinil que organizava nas prateleiras, todos capazes
de serem vistos pela vidraça das janelas.
E
assim, assisti curioso por dias a rotina do nobre colecionador, que
desempacotava diariamente coleções de quadros, estatuetas, vasos e itens dos
mais variados tipos, os quais preenchiam prateleiras e estantes pelos cômodos
da casa. O casarão mobiliado tornou-se brilhantemente ornamentado pelos
milhares de artefatos.
Mas
é fascinante observar como o material muitas vezes peca por não preencher o
espírito.
Enfurnado
em suas coleções, Guilhermo se sentia solitário. Sozinho e desamparado. Entrou
em depressão em uma quinzena de meses. Depressão que resultou em suicídio,
vindo do cano de um dos revólveres que possuía em sua coleção de armas, na
forma de bala que invadira sua boca, irrompera seu crânio, e fizera litros de
sangue encharcarem o chão de carpete.
O
corpo foi levado, o caso foi abafado, e a casa posta à venda junto a todos os
itens das coleções. Por anos, entretanto, a casa vazia permaneceu. Entediado,
eu observava diariamente suas portas de entrada duplas, aguardando que um novo
morador viesse a me entreter.
Porém
não foram moradores que ocuparam minha visão nos próximos meses, mas sim o
casal de jovens de nomes Célio e Renata. Não sei bem o que queriam. Uma
aventura arriscada, ou simplesmente um local reservado para acasalamento. Em
recente maioridade, ambos moravam com os pais e não dispunham de local algum
para a devida privacidade do casal.
Mas
é fascinante observar como o desejo leva os ardentes a cometer as maiores
loucuras.
Instigados
pela placa “Vende-se”, e sabidos dos rumores mal falados que alegavam o local
sombrio como cenário de suicídio, o jovem casal arrombou a porta e invadiu os
aposentos do casarão. Fizeram do local silencioso seu secreto e temporário
ninho de apego. Repetiam o mal feito quase que diariamente, voltando todas as
noites e invadindo o domicílio abandonado, utilizando os quartos, banheiros, a
cozinha e a sala, todos repletos de coleções artísticas e ornamentais, para
fazer aquilo que chamavam de amor.
Mas
é fascinante observar como o mundo destrói a ingenuidade.
A
maioridade de Célio veio com o obrigatório alistamento, e o pobre jovem foi
forçado a adentrar o exército, deixando Renata desolada em espera. O casal não
voltou a invadir o casarão amarelo, e minhas espiadas em suas noites de amor
deram-se por encerradas assim. Mas não antes de deixar a casa pela última vez,
a desvirtuada Renata levou consigo um dos discos organizados na estante dos
vinis. O volume furtado de Engenheiros a permitiria ouvir incontáveis vezes a
“Infinita Highway”, a fazendo lembrar do amado por todo o tempo em que
estivesse longe em serviço militar.
Acredito
que passei mais de anos sem ver qualquer pessoa novamente na tal casa. Não sei
ao certo contar o tempo como vocês. Mas pude ver que bons períodos se passavam
pelo alterar das cores das folhas que fartavam a copa volumosa da árvore de
tronco retorcido a alguns metros de mim.
A
casa praticamente lançada ao abandono foi furtada mais de três vezes, em crimes
consecutivos executados por quadrilhas. Logo, nenhum artefato das coleções do
antigo proprietário permaneceu em seu interior. Completamente desnuda em
ornamentos, e ainda assombrada pela história de suicídio, a residência teve um
enorme declínio em seu preço de venda. A queda dos valores foi tão alta, que um
interessado e paupérrimo pai solteiro juntou suas poucas economias e conseguiu
adquirir o imóvel.
Marcelo
e sua filha Virgínia foram a nova família a qual assisti. Um pai amoroso e
atencioso que, mesmo sem possuir muitos recursos, dava à filha toda a atenção e
tempo dos quais dispunha. Ao lado do desejo de ver a pequenina Virgínia
crescer, carregava consigo o sonho de se tornar um escritor. Suas horas vagas
eram quase que completamente investidas na tentativa de escrever seus romances
e contos. O tempo tornava-se pouco, e foi necessário que contratasse uma babá
para cuidar de Virgínia. Contratou a jovem Denise, que morava ao fim da rua, e
tentava reunir economias para pagar a faculdade.
Mas
é fascinante observar como mesmo os sonhos mais sinuosos às vezes necessitam de
estímulo.
A
escrita de Marcelo por anos permaneceu empacada. Por mais que fosse criativo,
necessitava de algum insight inspirador que lhe trouxesse alguma ideia
original. Foi numa tarde de veraneio que uma mulher bateu a porta. Me esforcei
para reconhecê-la enquanto Marcelo a atendia, até perceber que, por mais que
sua aparência fosse bem mais velha do que eu me lembrava, era ninguém menos do
que Renata.
A
já não mais jovem mulher decidira retornar ao casarão que há anos não invadia,
na intenção de devolver o disco de vinil que furtara há tempos. Agora que
estava casada com Célio, com quem fora mãe de dois filhos, não precisava mais
de músicas na vitrola para saciar a falta que o amado lhe fizera.
Do
meu canto esverdeado no gramado, pude enxergar na expressão distante de Marcelo
a maravilhosa ideia que surgiu em sua mente quando Renata lhe entregou o disco.
Pude ler em seus olhos o modo como começou a pensar que, assim como a história
daquele casal, muitas outras haviam passado pela mesmíssima residência.
Decifrei no sorriso do aspirante à escritor que ele finalmente percebera que
uma casa é repleta de memórias, e que tal concepção era uma ideia excelente para
um livro.
Após
a ida de Renata, enxerguei pela janela o afoito Marcelo sentar-se em frente ao computador
e escrever por horas, relatando em suas páginas um romance no qual de maneira
criativa inventava histórias diversas que haviam ocorrido naquela casa.
Foram
necessários meses de contatos e esperas, mas uma editora logo se interessou
pela obra. O romance foi publicado, e em pouquíssimos anos tornou-se um sucesso
em nível nacional.
Mas
é fascinante observar como a fama sobe aos olhos mais rápido que a paixão.
Focado
em sua nova carreira de escritor profissional, Marcelo deixou a filha Virgínia
sobre os cuidados da babá, e mudou-se para uma segunda casa em São Paulo, onde
podia ter contato mais direto com editoras para cuidar de suas futuras
publicações.
Ainda
que sentisse a falta do pai, Virgínia era sustentada por uma farta mesada que
provinha do mesmo rotineiramente, enquanto a babá Denise ocupava o papel de pai
e mãe, e se afeiçoava à garota cada vez mais.
Mas
é fascinante observar como ingênuas crianças crescem e tornam-se jovens
insensatos.
Após
envolver-se numa relação promíscua, Virgínia engravidou aos dezesseis anos.
Rebelando-se numa crise existencial por diversos motivos sem cabimento,
abandonou o filho recém-nascido aos cuidados de Denise, e fugiu com o namorado
para uma cidadezinha distante.
Denise,
ainda recebendo de Marcelo o dinheiro mensal para os cuidados da casa, deixou de
lado quaisquer outras perspectivas de emprego e entregou-se inteiramente ao
bebê. Deu a ele o nome
de Danilo, e amou-o como a um filho. Passou a morar no
casarão amarelo, como se este fosse seu, ainda que sustentada pelo dinheiro do
patrão que nunca deixava de chegar.
Foi
fascinante para mim enxergar como a não mais babá deu a casa um estilo próprio.
Repintando as paredes, trocando os azulejos, e organizando toda a decoração
para uma atmosfera mais colorida e harmônica. Incomodava-a, contudo, algumas
manchas avermelhadas que jamais saíam do carpete. Manchas estas que ela não
sabia de onde vinham, mas que eu me lembrava bem de quando haviam sido
respingadas do crânio estourado de Guilhermo.
Denise
foi então em busca de uma loja de artefatos de limpeza, à procura de um
alvejante que pudesse as tais manchas eliminar. Foi atendida por um moço de
charmoso cavanhaque chamado Victor, que se dispôs a atendê-la pessoalmente,
indo até sua casa e testando o produto no carpete. O alvejante, contudo, fora
apenas uma desculpa.
Em
sua ida até a residência, após terminado o serviço, Victor acabara sendo
convidado para um jantar com Denise e o pequeno Danilo. Um jantar no qual o
atendente se dera tão bem com o jovem garoto, que acabara chamando a atenção da
mulher. Emocionei-me verdadeiramente ao enxergar pela janela a cena magnífica
entre os três. Eram apenas um homem, uma mulher e um garoto, sem laços de
sangue algum. Entretanto, pareciam verdadeiramente agir como uma família.
Mas
é fascinante observar como é mesmo por ações, e não por genética, que uma
família se forma enfim.
Victor
e Denise, após alguns anos, se casaram numa simples cerimônia e adotaram Danilo
como filho oficialmente registrado. Por
anos me deleitei com o romance de ambos, que habitavam o casarão como se a eles
pertencesse. O dinheiro que ainda vinha aos montes do escritor cada vez mais
famoso e abastado permitia que a nova família ali vivesse com fartura.
Na
posição que ocupava do jardim, me divertia ao ver o modo como se deitavam no
meu gramado em frente à casa, e observavam as estrelas. Juntos, nomeavam as
constelações com apelidos bobos, e murmuravam sobre a beleza dos tais pontos
brilhantes lá de cima.
Era
incrível para mim também ver o pequeno Danilo crescer e se tornar um homem.
Victor e Denise, já mais velhos, o haviam educado muitíssimo bem.
Incentivaram-no a levar a sério a educação acadêmica, o que o levou a cursar a
faculdade de Direito e tornar-se um reconhecido e pomposo advogado anos mais
tarde.
Com o filho formado, casado e já morando em casa
própria, Denise e Victor aproveitaram os anos de casamento vivendo juntos na
casa de tijolos amarelos. Amavam-se incondicionalmente, e juntos repetiam
sempre o feito de observar as estrelas que tanto os entretinham. Diziam que o
amor era para sempre, e que após décadas de casamento, um dia repousariam
juntos no brilho mágico das constelações.
Mas
é fascinante observar como o destino às vezes intervém com curvas trágicas.
Assisti
com pesar ao sofrimento do casal quando Victor descobriu o tumor, e começou o
tratamento. Foi quando enxerguei nos humanos a fabulosa arte de lutar pela
vida. E a estupenda loucura de lutar pelo amor.
Ainda
assim... Victor se foi. Faleceu numa tarde nublada, deixando a pobre Denise num
desolamento inconsolável. Observei-a chorando por dias... semanas... meses...
tornando-se triste, deprimida e por fim louca.
Assisti
assustado a sua reação quando ela decidiu pôr fim a todas as memórias do
casarão. Quando rogou em voz alta que não deixaria que o marido se tornasse
apenas mais uma história... mais uma memória nos tijolos amarelos que acabaria
indo parar nas páginas de um dos livros de Marcelo.
Decidida
a fazer com que o marido fosse o último e eterno habitante daquela casa,
desfez-se do antigo estoque de uísque, despejando o líquido inflamável pelo
carpete e ateando fogo em toda a construção.
Assisti
às lágrimas brotarem de seus olhos enquanto o casarão era consumido pelas
chamas.
Mas
é fascinante observar como os humanos são propensos à loucura.
Apesar
de que... eu, em minha singela textura de porcelana, com este gorro pontudo e
este sorriso que daqui nunca sai, sonho ainda em um dia saber como é isso.
Sonho
em saber como é possuir essa loucura chamada amor. Essa loucura que permite à
Denise que, por motivo nenhum, abra a caixa de correio e vasculhe seu interior.
Lá dentro, ela encontra uma fresta suja e empoeirada. E dentro da fresta,
percebe que há preso um bilhete. Abre. Lê. E, por fim, chora. Chora
incontrolavelmente, pois as palavras ali escritas mexem com algo dentro dela.
Eu,
em minha ignorância de gnomo de jardim, sei que o bilhete em suas mãos foi
deixado ali há muito tempo. Mas ela, em sua magia de ser humano, acredita
fielmente que é um recado de Victor.
“Ainda
te olho todos os dias daqui de cima, com o mesmo amor que sempre tive por
você.”