(Texto finalizado às 1:40. Isso com certeza quer dizer alguma coisa...)
Sacção
cognitiva. Foi este o termo inventado por meu amigo Chubble para designar o
evento ocorrido quando duas histórias completamente diferentes são capazes de
se relacionar, e ser comparadas de tal maneira que uma torna possível a
compreensão da outra. Disse a ele que já existiam diversos termos para designar
tal evento, sendo ‘metáfora’ talvez o mais recorrente. Mas insistiu o nobre ser
que ‘sacção cognitiva’ é agora um neológico termo formalizado, e que não muito
em breve o veremos estampado em didáticos livros de português.
E é fazendo uso de tal sacção, que vos falo do dilema
que envolve todo jovem escritor. A tão pomposa e complexa dama chamada Reescrita.
Ah, a Escrita! Tão bela e ingênua em seu primeiro
brilhar! Não há magia maior do que a presente no brilho que existe entre as
linhas que trespassam o nascimento daquela ideia... aquela ideia que esteve em
sua mente por eras... formigando para ser inscrita em papel. Quando seu texto
finalmente nasce, o orgulho paterno lhe enche da maneira mais teatral possível.
A história lentamente parte ao mundo, e você sabe que parte sua partirá junto a
ela nessa partida partidária.
Mas não há como negar. Fazer com que um texto nasça é
peculiarmente prazeroso. Mas fazê-lo voltar ao ventre pra nascer uma segunda
vez é desgastante e enfadonho.
“Gostei do seu texto, caro amigo que me pediu uma opinião sincera, mas
talvez você deva melhorá-lo, acrescentando mais detalhes no parágrafo onde
descreve as axilas da protagonista, e alterando o que acontece no final. Aquele
lance da explosão não se encaixou muito bem, desculpe. Tente mudá-lo.” E é com um comentário desses que tudo se
desmorona. Não bastaram os meses de gestação que você gastou numa história...
lá vem um sábio leitor e opina dizendo que você deve reescrever...
Ah, a Reescrita! Tão necessária, mas tão
demoniacamente chata! Passar pelos locais onde já esteve, e dizer aos seus
amigos verbos e substantivos que eles não estão exercendo seu papel com
maestria, e precisam ser trocados por outros que exerçam a função de maneira
melhor. Mesmo que o autor concorde que há falhas em suas linhas, ele nunca vai
se render a ideia de que alterar suas palavras é tão divertido quanto
escrevê-las pela primeira vez. A escrita lhe serve de aspiração... é romper seus
limites e expressar sua voz. Já a Reescrita vem lhe aparar as arestas,
adequando seu texto ao que “deveria ser” e tornando-o mais aceitável... E quem
disse que devemos sempre nos render ao que é aceitável?
E é nessa sacção que chegamos a Shelby. A terceira e
meia garota por quem Chubble se apaixonou (o ‘meia’ é uma história para mais
tarde). Nunca entendi quais os motivos que levaram meu sábio amigo a gostar
dela, mas sei que no momento em que pôs seus não-sei-quantos olhos na garota,
sentiu uma atração que ia além de mera paixão casual. Não sabia se era o que os
humanos costumavam chamar de amor à primeira vista. Por isso, olhou para Shelby
dezessete vezes antes de ter certeza.
Talvez eu tenha esquecido de mencionar as
circunstâncias em que ocorreu tal encontro. Há tempos minha irmã fez uma curta
viagem ao Rio de Janeiro, para cuidar de negócios que envolviam raquetes e
croissants de chocolate, e sem nem mesmo saber levou nosso oculto amigo dentro
da bagagem. Ansioso por conhecer a chamada cidade maravilhosa, Chubble me
relatou que a única coisa realmente maravilhosa que encontrou fora Shelby. A
tão bela moça que encantava seus olhos, os quais apenas ele podia enxergar.
Shelby era como ele... enigmática e admiradora de queijo gorgonzola.
Por dias os dois aproveitaram a cidade, divertindo-se
em piqueniques improvisados em esquinas do lado leste e em corridas durante a
madrugada contra as gélidas correntes de ar que trespassavam um calçadão
qualquer. A história de amor entre ambos floresceu como um rápido devaneio
infantil. Tanto que, no dia em que minha irmã voltou para casa, não apenas
Chubble voltou na bagagem, como Shelby adentrou nossa casa também.
E um lar, onde uma criatura enigmática já habitava,
duplamente estranho se tornou. Nossos olhos humanos não enxergavam Shelby, mas
qualquer um era capaz de sentir o grande espaço que ela ocupava. Talvez fosse
seu ego inflável, ou a mobília da qual não conseguia se livrar. Tudo o que sei
é que, não bastava o quanto ela me incomodasse, não pude dizer “não” quando
Chubble pediu que eu permitisse que ela se mudasse. Também não pude dizer “sim”, e foi
por isso que acabei dizendo “Aceita sanduíche de mortadela?”.
Por dias a relação entre o casal se manteve estável.
Gostavam de jogar cruzadas e de recitar poemas às quatro e quinze da manhã.
Cobiçavam comprar um cachorro e dissecá-lo para abstrair conhecimento
biológico. Juntos, sonhavam cada vez mais alto...
Chubble nunca poderá dizer que não foi avisado. Disse
a ele para que não se entregasse completamente a paixão. Mas o ingênuo ser fatalmente fez de Shelby o centro de suas
atenções. Não sei se a garota se sentiu pressionada pelo excesso de elogios e
carinho, ou se possuía alguma séria alergia a mortadela. Tudo o que sei é que
Shelby fracassou em sua missão, e após doze dias, nove horas e trinta e sete
minutos, não pôde mais sustentar seu disfarce. A pérfida individua era uma fugitiva.
Procurada por traficar porquinhos da índia canhotos a laboratórios
clandestinos. Não sei se era ave ou mamífero, mas era com certeza um ser
traiçoeiro. Esmagou os sentimentos do pobre Chubble, e deixou nossa casa
levando todo o estoque de gorgonzola.
E por dias meu pobre amigo desabou-se em decepção.
Não apenas os potes de sorvete, mas até mesmo os potes de feijão foram devorados durante sua extrema melancolia acompanhada
pela fome. Tratava-se da primeira grande desilusão amorosa do pequeno Chubble,
visto que nenhuma das outras duas e meia garotas de seu passado o cativara de
tal maneira.
Nos primeiros dias, desejou não apenas a morte de
Shelby, mas também que ela fosse torturada por babuínos impiedosos num método
diabólico e opressor. Após o estágio
raivoso, desejou que pudesse mudar seu passado. Que pudesse voltar no tempo, e
reviver as últimas semanas. Que tivesse percebido que havia muitas outras
coisas maravilhosas no Rio além da enigmática Shelby (dizem, por exemplo, que
há uma lata de lixo na esquina de uma das avenidas que é de uma simetria
perfeita). Que não tivesse depositado toda a sua eufórica paixão em tão pouco
tempo numa garota. Que tivesse agido de outra maneira...
Chubble
queria reescrever o ocorrido.
Foram
necessários alguns dias serenos e um pouco de chá de seticina para que meu nobre amigo entendesse que aquilo não era o
fim. Ou talvez fosse, mas que todo fim nos abre uma porta para um novo começo.
Nem tudo o que escrevemos ao longo da vida nos agrada, mas nem por isso podemos
voltar e refazer nossas tolas ações. Erros não foram feitos para serem
consertados, e sim para prevenir os outros erros do futuro.
A história
de Shelby não é apenas ruim. É um lixo. É chata, enfadonha, e não deveria ser contada a ninguém...
Mas nem por isso Chubble deve rejeitá-la. Afinal, qual mesmo a graça da vida se
não tivermos algumas desilusões? Do mesmo modo que os textos de um escritor
nunca de destacarão se não houver
alguns textos ruins vez ou outra. Reescrever é para os tolos... os sábios
deixam sua marca no texto de baixa qualidade, e dão um passo para o próximo volume, no qual sabiamente tentarão se
superar.
A intenção
de tal texto não é contar uma história. É falar sobre a Reescrita, essa tal
jovem que tanto me atormenta. E para tal faço uso da sacção cognitiva,
mostrando que até mesmo Chubble sabe que reescrever um texto é como lembrar-se
de uma ex-namorada. Vocês podem até voltar a se dar bem, mas nada nunca será como da primeira vez.
Afinal, textos
ruins são como desilusões amorosas... por mais que você queira esquecê-los,
apagá-los ou consertá-los, você sabe que tais refletem parte de sua essência. São
parte importante de seu passado. Retratam dias em que você agiu de maneira
estúpida, mas que ainda assim agiu como bem queria. E talvez, por isso, você
não deva tentar consertá-los...
Não sei nem se eu mesmo entendi o que
quis dizer com esse texto. Seres humanos tem certa dificuldade pra entender
certas metáforas... ou melhor... sacções cognitivas. Mas se os humanos não
compreendem, talvez para os pequenos porquinhos da índia escritores faça algum
sentido.
Nem sei se eu estava falando da Reescrita
realmente. Talvez fosse um modo que encontrei de falar sobre outra coisa. E
talvez Shelby não fosse traficante de verdade... Talvez... esse texto tenha
ficado um tanto confuso... ou talvez confuso demais... Talvez eu não devesse
tê-lo escrito...
Ou
talvez... eu deva Reescrevê-lo...
Sensacional! Vou descobrir onde a Shelby mora e dar na cara dela kkkkkkkkkkkk... onde já se viu fugir com o estoque de gorgonzola dos outros?? Brilhante, Barbossa...
ResponderExcluirAdorei! Você não deve reescrevê-lo, rsrsrsrs. Perfeito.
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