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Posted by : Felippe Barbosa quarta-feira, 8 de abril de 2015

É bem provável que digam os anjos que a chuva tinha cheiro de chocolate suíço no dia em que Soraia nasceu. Embora Chubble insista amargamente que não há mesmo maior revelia num derivado de cacau europeu do que numa boa tapioca brasileira. De qualquer forma... o cheiro era devanestador. Neologismo que aqui significa “aquilo que devanesta”.
O fato é que Soraia nasceu.
E como todo aquele que nasce, a garota cresceu.
E como toda garota que cresce, a jovem tornou-se mulher.
Sim. Mulher, com seios, TPM e sexto sentido. A pele morena, a cada ano mais escura, em contraste com os dourados cabelos, a cada dia mais tingidos. Trazia-lhe admiradores, assim como lhe traziam filhos.
Durante sua trajetória, engravidou cinco vezes de cinco distintos fornecedores de esperma. Dos filhos, três garotos e duas mulheres. Uma definitiva prole ideal para servir de combustível... este tal que acendia a centelha que ela precisava para alastrar sua maternidade.
Ser mãe. Esta era a vocação de Soraia.
Se havia algo que nenhum alguém jamais poderia negar era o incondicional afeto e preocupação que a mulher tinha por seus filhos.  Não apenas pelos cinco filhos legítimos que trouxera do ventre. Mas também qualquer reles e palpável necessitado que batesse a sua porta, janela ou panturrilha em busca de ajuda. Soraia considerava qualquer amigo ou conhecido como filho, e vivia seus dias cotidianamente prestando ajuda ao primeiro grito de socorro.
Foi tal vocação maternal que a levou a criar a distinta Escola Especializada Em Escoteirismo. Um belíssimo local que captava indivíduos infantis das favelas, ruas, praças e condomínios fechados, e os robotizava para uma vida fartamente recheada de valores e boas ações, instaurando um amor incondicional pelo lema “O próximo antes de mim”.
Os garotos e garotas escoteiros foram muitos. Passaram-se anos, e novas turmas surgiram, à medida que as seguintes subiam de nível, até alcançar a graduação. Os “Escoteiros de Soraia” tornaram-se conhecidos, por toda a cidade... por todo o estado... por todo o país. Salvavam crianças em árvores, e gatos perdidos em shoppings e supermercados. Faziam homenagens públicas a espécies silvestres da fauna, e capturavam políticos para mantê-los em cativeiro.
A franquia das Escolas Especializadas Em Escoteirismo se multiplicou em cinco distintas sedes por todo o território nacional. Cada um dos colégios se tornou responsabilidade de um dos filhos legítimos de Soraia.
O primeiro foi dado à Catarina, que aceitou-o de bom grado, sempre certa de que merecia as melhores regalias por ser a mais velha dos irmãos.
O segundo foi para Pedro, que, sempre cismado em discordar de tudo o que a irmã fazia, logo tomou uma das vagas para si, para provar que podia fazer um melhor serviço.
O terceiro irmão, Jeremias, logo viu na oportunidade uma forma de aumentar sua popularidade, descolando também alguns fundos para uma futura aquisição de um Xbox, e assumiu a direção de uma das franquias.
A quarta escola, ficou sob os comandos de Esther, a penúltima irmã, que de tão estudiosa e aplicada em suas pesquisas místicas, chegava a ser perturbada e lunática.
A última e, sim, menos importante... foi designada para os domínios de Evandro. O caçula da estirpe, com quem Soraia raramente tinha contato.
E assim se estabeleceram os negócios de família.
Mas nem só de pão viverá o homem. E nem só de amores vivia Soraia. Os anos na política se transfiguraram para um governo opressor, que abusava do poder e destoava daqueles que acreditavam em justiça. Condenada por propagar ideologias de alta periculosidade, Soraia foi mandada para o exílio. Expulsa para uma ilha longínqua, condenada a nunca mais voltar.
Contudo, os recados que deixara na geladeira para os cinco filhos afirmavam com toda a certeza que um dia ela voltaria, e que cada um deles deveria preservar o seu legado até que o momento chegasse.
Dessa forma, cada um passou a guiar sua Escola Especializada Em Escoteirismo à suas próprias maneiras.
Catarina, a mais velha, prometeu que, de todas as formas, manteria viva a imagem da mãe. Com uma extrema afeição por fotos, mandou emoldurar centenas de quadros com os semblantes afetuosos de Soraia, e espalhou-os por todos os cantos. As imagens serviam de lembrança. Um carinhoso cutucão na memória que permitia aos escoteiros mirins sentirem a matriarca sempre por perto.
Contudo, buscava uma maneira de ir em busca da mãe. Sem tê-la por perto, buscou ajuda dos seus seguidores. Os demais Escoteiros já graduados que haviam vivido em seu propósito, e que sabiam de cor todos os ensinamentos, desde o Manual de Cozinha à Base de Queijo, ao Guia de Sobrevivência Na Sessão de Nicholas Sparks. Cada um daqueles grandes nomes conhecidos trazia para a escola de Catarina ensinamentos inigualáveis, fazendo com que todos se sentissem mais próximos da mesma distante Soraia.
Pedro, por sua vez, recusou-se a pedir ajuda de tais profissionais. Acreditava que a sabedoria de Soraia era tão magnificamente perfeita, que ninguém a ela podia se equiparar. Contudo, era sabido que sua mãe havia sido, além de matriarca, e atriz substituta na versão municipal de O Mágico de Oz, uma excelente escritora. Deixara para trás textos e escrituras recheados de seus princípios e ensinamentos.
Assim, para que não houvesse erros ou mirabolações, a escola de Pedro usou os livros. Os alunos eram didaticamente educados todos os dias, estimulados a ler textos e mais textos de Soraia que lhes ensinavam belamente. As turmas foram muitas, e os estudantes cada vez mais capacitados tornaram-se exímios conhecedores dos livros de escoteirismo. Com o tempo, a Escola Especializada Em Escoteirismo de Pedro abriu turmas para o ensino básico, assim como classes para pós-graduação. E a educação tornou-se entre eles primazia.
Pedro, entretanto, jamais deixou de buscar pela mãe. Sabia enfim que não havia melhor meio de aproximá-lo de Soraia do que ler suas belíssimas palavras. E vivenciando seus textos cotidianamente, ao lado de um pacote de Doritos diário que alimentava seu vício incessante por salgadinhos, o segundo filho seguiu a vida mantendo a esperança no retorno da mulher.
Jeremias, por sua vez, teve medo de deixar que cada estudante interpretasse os livros de Soraia por conta própria. A receita de Bolo de Papo de Anjo contida no Livro dos Segredos Culinários, por exemplo, era tão complexa que, se mal interpretada, poderia resultar no nascimento de um vírus capaz de causar um verdadeiro apocalipse. Decidiu então que caberia a ele interpretar as palavras da mãe e ensinar aos alunos o que cada sílaba significava. Decidido a manter viva a imagem de Soraia, gastou anos contando aos Escoteiros sobre a pessoa maravilhosa que esta fora e ainda era.
Não pôde, é claro, deixar de tentar buscá-la de alguma forma. Sabia o quanto a mãe era adepta de popularidade. Assim, decidiu divulgar seu nome de todas as formas, disposto a fazer que o mundo todo soubesse quem ela era. Uniu grupos de estudantes e saiu pelas ruas, batendo de porta em porta, contando a todos sobre Soraia e os valores maravilhosos que ela propagava. As pessoas se encantavam com tudo o que Jeremias espalhava, e logo o nome da matriarca dos Escoteiros tornou-se conhecido e estampado em outdoors, programas de auditório, e adesivos de para-choque.
Já a jovem e ametodicamente ousada Esther, decidiu ir além do proposto pelos irmãos mais velhos, e buscou um meio de haver um real contato com Soraia. Era sabido que os sinais de telefone e conversas por Skype não funcionavam no território exilado, mas foi com muita pesquisa e testes duvidosos em rádios abandonadas e depósitos radioativos que a mulher conseguiu uma maneira. Desenvolveu um método de captação de mensagens através de antenas parabólicas, no qual sussurros eram jogados em sua mente através de ondas magnéticas, permitindo-a contatar indivíduos da Ilha do Exílio. As antenas jamais se conectaram diretamente a sua mãe, mas contatavam vez ou outra alguns exilados que viviam com ela e lhe transmitiam suas mensagens.
Sem nunca deixar as pesquisas com as antenas comunicativas de lado, Esther passou a divulgar as mensagens dos amigos de sua mãe, ensinando aos alunos valores sobra a bondade e a caridade. O sistema da Escola, organizado em níveis, apenas permitia que o aluno prosseguisse para uma nova etapa se ele realmente demonstrasse bons feitos na trajetória.
Pois então...
Que uma relação entre quatro irmãos que desde a infância não fora pacífica, logo tornou-se alimentada por um espírito competitivo de quem seria o melhor Escoteiro-Mór. Cada um passou os anos seguintes na tentativa de provar que, quando a mãe enfim retornasse, dentre todas as Escolas, da sua ela mais se orgulharia.
Distante então de Catarina, Pedro, Jeremias e Esther, o caçula Evandro cuidava também da Escola da qual ficara encarregado.
Ao contrário dos irmãos, jamais buscou por Soraia. Nunca havia chegado a criar nenhum vínculo afetivo pela mãe sempre atarefada.
Assim, por mais que cuidasse do legado que ela lhe deixara, jamais se importou em pensar na figura da matriarca, e, principalmente, em momento algum acreditara que ela algum dia retornaria do exílio.
Por mais que não pensasse nela... pensava em seus alunos. Esboçava um apreço e afeto imenso por cada um daqueles pequenos jovens em sua Escola, e voltou os olhos para a receita que os tais tanto almejavam: bandejas de educação com sérias pitadas de carinho.
Ajudou não apenas na formação de seus Escoteiros, mas lutou por direitos dos idosos em protestos na prefeitura, realizou campanhas de agasalhos e brinquedos novos para famílias da região, contratou engenheiros que esboçassem um devido projeto de saneamento para os bairros necessitados, construiu uma rede gratuita de oficinas de arte e esporte para crianças e adolescentes, enquanto distribuía semanalmente dez mil caixas de pizza de franbacon para todos da comunidade.
Viveu sua vida em prol de sorrisos... Sorrisos das faces de seus alunos, de seus amigos, de conhecidos, e de desconhecidos também.
Por mais que houvesse se esquecido da mãe, jamais se esquecera dos irmãos. Enquanto os demais perpetuavam em brigas e discussões tolas numa competição de quem dirigia a melhor Escola, Evandro se dispôs a ajudar cada um da melhor maneira que pôde. Ajudou Catarina a contatar professores de outras escolas para lhe prestar auxílio. Contribuiu com as pesquisas de Pedro lhe fornecendo livros de sua biblioteca privada. Fez empréstimos financeiros para que Jeremias pudesse investir na divulgação de seu trabalho. E selecionou alguns de seus melhores Escoteiros para ajudar na construção das antenas parabólicas de Esther.
E foi neste cair das pétalas que anos se passaram.
As Escolas dos quatro irmãos mais velhos seguiam os passos de Soraia, enquanto a escola de Evandro seguia os passos que se mostravam necessários.
Eis então que uma grave epidemia adoentou os corruptos no poder. Logo, ditadores morreram em massa, e o país voltou ao período democrático. Num dia de inverno, tipicamente sem neve, onde cada exilado teve a chance irrecusável (ou não) de voltar para casa, Soraia retornou.
A multidão foi à loucura. Pessoas, animais e palhaços foram às ruas para festejar a volta daquela que fundara as tão respeitadas e essenciais Escolas Especializadas Em Escoteirismo.
A felicidade de ninguém, contudo, podia ser maior do que aquela que alastrava os filhos da mulher.
Catarina, Pedro, Jeremias e Esther vestiram seus melhores pares de roupa, com sapatos combinando e sorrisos polidamente carismáticos. Não viam a hora de mostrar para Soraia tudo aquilo que haviam construído em sua ausência. Os quadros e bustos em sua homenagem, as pesquisas fundadas em seus livros, a publicidade em torno de seu nome, e os projetos de caridade feitos conforme ela bem ensinara.
Soraia nunca se sentiu tão amada. Os quatro filhos mais velhos lhe haviam provado jamais terem se esquecido de seu nome.
Mas foi no encontro do último filho que instaurou-se a surpresa real. Envergonhado, Evandro arrependia-se de todas as formas de ter duvidado da própria mãe. De ter perdido as esperanças. Desconsolado, pedia em murmúrios que ela o perdoasse.
Mas não foi o que fez Soraia. A matriarca enxergou na Escola de Evandro tudo aquilo que sempre pregara. Em cada ato e detalhe singelamente realizado, recendia a mensagem de seu lema principal: “O próximo antes de mim”.
- Seus irmãos passaram a vida cuidando com amor dos Escoteiros deles, na intenção de me agradar. – ponderou a mãe - Tu passaste o mesmo período cuidando dos teus, na simples intenção de que seus Escoteiros se sentissem amados, e aprendessem a amar também.
Foram estas palavras que lhe deixara antes de dar as costas e partir em férias prolongadas para a Escandinávia. Mas para Evandro, que sempre vivera em prol de sorrisos, o sorriso dela era tudo. Tudo para deixar claro o que se passava na mente sinuosa da negra mulher de cabelos tingidos.
Soraia jamais quisera ser amada. Quisera ela, na verdade, que o mundo fosse amado por seus filhos.
Das homenagens de Catarina, da esperança de Pedro, da dedicação de Jeremias e do carinho de Esther... obtivera amor.
Mas, naquele dia, apenas da pura e despretensiosa entrega árdua de Evandro obtivera orgulho.
Pois lhe mostrando que amava o mundo, lhe mostrava que amava o lema, e lhe mostrando que amava o lema, Evandro acabava mostrando que, mais do que todos outros, amava Soraia acima de todas as coisas.

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